Basta de mesquinhez!

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Gianni Schicchi Nuno Ferreira Santos

Blue Monday Gianni Schicchi

De George Gershwin e Giacomo Puccini, respectivamente Orquestra Sinfónica Portuguesa Direcção musical: Martin André Encenação: André e. Teodósio Desenho de luz: Daniel Worm d"Assumpção Com Mário João Alves, Laura Giordano, João Merino, Nuno Dias, João de Oliveira, Yanni Yannissis, Maria Luísa de Freitas, Leonardo Capalbo, Carlos Guilherme, Ana Paula Russo, Miguel Neves, Jorge Martins, Luisa Francesconi, Simeon Dimitrov, Rui Baeta, Christian Luján, João Rosa Teatro Nacional de São Carlos Lisboa, 10 de Fevereiro, às 20h Sala a 3/4

Abre o pano e há gente em festa em cima do palco. Ali está um carro funerário. Acolá um morto. A gente em festa subitamente apercebe-se de que está a ser vista por nós, espectadores. E finge então estar muito triste, retomando a compostura. Assim começa Gianni Schicchi na nova produção do São Carlos, na encenação de André e. Teodósio. E assim, de uma cajadada, o fingimento dos actores desfaz-se e desdobra-se - eles fingem que fingem (haverá "teatro dentro do teatro") - e fica explícita a hipocrisia das personagens, na verdade contentíssimas com a morte de um tal Buoso Donati, e como cães esfomeados esperando abocanhar a herança.

A comédia instala-se assim, com ajuda da música certeira de Puccini, que respigou do romantismo e do "seu" verismo original para fazer uma comédia bufa madura, com grande talento musical e habilidade teatral. Inspiração: o Inferno da Divina Comédia de Dante, como no fim fica bem explícito.

Os cantores fizeram neste Gianni Schicchi um trabalho colectivo extraordinário, de entrega, concentração, competência vocal e teatral. A orquestra dirigida por Martin André conseguiu manter o equilíbrio sem perder a fogosidade e o sentido de humor, agarrando um certo excesso que tem esta divina comédia de Puccini, em que tudo é rápido e eficaz. A encenação de André Teodósio, com cenário e figurinos de Vasco Araújo foi certeira, "salvando" o amor de Rinuccio e Lauretta e a astúcia de Gianni Schicchi, mas ao mesmo tempo arrasando tudo: porque o carro funerário partirá com a família toda lá dentro e demolirá tudo atrás de si. É a sociedade do dinheiro e da guerra (a ópera é de 1918, fim da Primeira Guerra Mundial), hipócrita, gananciosa e corrupta. Comédia?

"Basta de tanto preconceito e mesquinhez!", diz Rinuccio (muito convincente no papel o tenor Leonardo Capalbo), personagem contraditória que faz as regras do jogo mas também as desfaz - e aí reside alguma esperança, para lá da denúncia radical da tacanhez europeia. E não será nisto também que se joga a actualidade séria destas ligeirezas?

Antes de Gianni Schicchi veio Blue Monday, a primeira ópera de Gershwin. Mas aqui, ao contrário do Puccini, não se agarrou musicalmente o essencial. Esta minitragédia jazz, reduzida ao esqueleto e a pequenas canções, não dá tempo para quase nada. A encenação expôs o esqueleto e pôs bem a tragédia a ser uma comédia americana, outra face - vendável, pop - da mesma moeda que é a ruína de uma civilização e de uma cultura ocidental (e de um tipo de teatro, também). Mas em Blue Monday (triste segunda-feira de quem é pau para toda a obra!) não há tempo - é preciso ser muito preciso. E os cantores, aqui, poderiam melhorar francamente no swing que a peça exige e que a orquestra tentou captar. Quiseram cantar ópera "a sério", mas Blue Monday é só uma pequena peça para testar na Broadway (e não correu bem a Gershwin em 1922) e deveria ser cantada de outra forma. Excepção feliz foi a leveza "assassina" da soprano Laura Giordano na personagem da apaixonada Vi, que se engana na sua intuição feminina, e mata por ciúme ao simples cheiro de um telegrama.

Desta noite "ligeira" (e rápida) no Teatro de São Carlos fica sobretudo a força provocatória de Schicchi, vencedor provisório na sociedade da ganância. Mas o inferno também o espera.

Pedro Boléo

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