As paixões de Sara Mingardo, que canta fado quando ninguém ouve

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Tão longe do estereótipo da diva operática italiana como do perfil habitual das figuras mediáticas da música barroca, podemos ouvi-la cantar hoje Vivaldi no CCB. Fado só quando ninguém ouve...

"Ou canto música barroca, ou deixo de cantar!", disse Sara Mingardo no início da sua carreira. Há 25 anos, numa época em que a ópera barroca em Itália era ainda vista como repertório de segunda em comparação com Verdi ou Puccini, poucos acreditavam que a veneziana pudesse viver da música antiga. Mas foi acolhida por maestros da craveira de Gardiner, Rousset ou Minkowsky e o seu timbre de contralto e a clareza do seu estilo são hoje marcas distintivas no universo da música barroca, alimentado por uma máquina de marketing que potencia mais o culto de sopranos e contratenores. Uma ampla e densa tessitura grave, a emissão vocal límpida e uma fluente agilidade permitem a Sara cantar muitas das obras dedicadas aos antigos castrati, colorir com tons sombrios as páginas mais pungentes da música sacra e transmitir o carácter heróico de personagens da oratória e da ópera setecentista, mas também abordar o Lied germânico e a música de Mahler. Casada com o barítono português José Fardilha, respondeu às perguntas num português fluente e revelou a sua paixão pelo fado. Hoje, às 17h, será possível ouvi-la no CCB em conjunto com o Concerto Italiano, de Rinaldo Alessandrini. O programa é dedicado a Vivaldi, incluindo a Cantata Cessate, omai cessate, o Salmo Nisi Dominus e o Stabat Mater.

A sua gravação do Stabat Mater de Vivaldi de 2002 é uma referência. A forma como vê esta obra tem mudado?

Tento procurar sempre qualquer coisa diferente, cantar como se fosse a primeira vez. O tempo passa e vamos amadurecendo e ouvindo de maneira diferente. O Stabat Mater é uma obra-prima, mas nem toda a música de Vivaldi tem essa qualidade superlativa. Ele escreveu o Stabat Mater para a contralto Anna Giró, por quem estava apaixonado. Quanto mais canto esta obra, mais me parece descobrir essa paixão. Tem algo de diferente da restante música sacra.

Há uma diferença entre a escrita de Vivaldi no domínio da ópera e da música sacra?

Hoje temos tendência para pensar que a música surge num momento de inspiração. Vivaldi foi um grande compositor, mas tal como a maior parte do seus contemporâneos escrevia música para ganhar a vida. Tem óperas bonitas com algumas árias muito boas, mas encontramos também muita coisa que parece ter sido escrita para cumprir prazos e pela necessidade de ganhar dinheiro. Não sinto isso na música sacra - e já cantei praticamente tudo. Principalmente as obras dedicadas ao contralto são belíssimas e vê-se que foram escrita com tempo e com uma inspiração bem maior do que no caso da ópera. Até hoje não fiquei deslumbrada por nenhuma ópera de Vivaldi.

Prefere as óperas de Handel?

Muita gente vai dizer que estou maluca por dizer isto, mas vou dizer na mesma: não há comparação entre Vivaldi e Handel. Handel poderá nunca ter escrito algo comparável ao Stabat Mater de Vivaldi no campo da música religiosa, mas na ópera é muito superior, tanto no plano musical como dramatúrgico.

Parte dos papéis da ópera barroca hoje cantados por contraltos femininos ou masculinos (contratenores) eram destinadas aos castrati. Há diferenças significativas entre as obras que Vivaldi dedicou a um contralto ou a um castrato?

Não se pode comparar a voz de contratenor com a voz de castrato. Tanto fisicamente como vocalmente era outra coisa. A primeira coisa que vou tentar fazer quando chegar ao Paraíso, se é que existe, é procurar o Senesino [famoso castrato a quem Handel dedicou notáveis papéis] para ouvir como é que cantava! Há papéis de ópera que podem ficar bem aos contratenores actuais e muitos deles cantam muito bem, mas ouvir o Stabat Mater de Vivaldi cantado por um homem, não obrigada!

Por outro lado, na ópera barroca contraltos, as mulheres, cantam personagens masculinas. Quais as maiores dificuldades dessas interpretações?

Para uma mulher é sempre mais complicado ficar de pé num palco e tentar de fazer de homem. Handel escreveu papéis para castrati lindíssimos... A principal dificuldade é física e não vocal. Quanto à psicologia da personagem, depende muito do encenador. Se souber o que está a fazer e onde quer chegar, ajuda muito; se não, torna-se complicado.

Tem actuado com orquestras barrocas e orquestras modernas, por vezes no mesmo repertório, como é caso do Stabat Mater de Pergolesi com Alessandrini e depois com Claudio Abbado. A mudança de abordagem interpretativa é complicada?

Depende. Fazer música barroca com Alessandrini ou com Gardiner é excelente. Abbado não fez repertório barroco durante muitos anos, mas quando temos a sorte de encontrar um maestro dessa grandeza é uma experiência extraordinária. Quando fiz o Stabat Mater de Pergolesi com ele, encontrei um maestro consciente do estilo barroco, que sabia o que se pode e não pode fazer. O pior é quando se encontram maestros menores que acham que são especialistas barrocos e depois não sabem nada! Daí que poder trabalhar com alguém como Abbado ou Colin Davis seja uma maravilha.

A atitude em relação à música barroca mudou desde a altura e que começou a estudar canto. Qual é a sua experiência?

Cantei o primeiro Stabat Mater de Pergolesi em 1977, no primeiro ano do conservatório em Veneza. Comecei logo a estudar música barroca, mas à medida que o curso prosseguia deixava-se quase de cantar repertório barroco. Quando acabei o conservatório, entrei no Coro do Teatro La Fenice e fazia só ópera. Foi aí que percebi que queria fazer ópera barroca e música barroca. Na altura muitos me diziam: "Não vai conseguir viver disso, sobretudo em Itália, esqueça!" Ganhei o Concurso [Toti dal Monte de Treviso] em 1988 com La Cenerentola de Rossini e comecei a trabalhar no repertório lírico italiano do século XIX, mas cansei-me. "Ou vou cantar ópera barroca e fazer concertos barrocos, ou deixo de cantar"! Acabei por ter sorte, pois em Inglaterra e França abriram-me as portas e comecei a trabalhar na música barroca com maestros como Gardiner, Minkowski ou Rousset. Há 25 anos, em Itália, a ópera barroca era considerada música de segunda. Mas devagar o movimento da música antiga chegou também a Itália.

Além do Barroco tem também paixão pelo Lied e por Mahler. O que a atrai nesse repertório germânico?

A música é de tal maneira bela, que fico sem palavras. É simplesmente música, sem coisas adicionais: encenador, figurinos... No próximo ano vou fazer os Kindertotenlieder, de Mahler, e a Sinfonia nº3, de Mahler, com o maestro Abbado em Salzburgo. O maior desafio tem a ver com a língua, mas estudando muito consegui cantar também este repertório na Alemanha. Faço o melhor que posso, com toda a humildade.

É casada com um português, o que conhece da música portuguesa?

Da música barroca conheço pouco, algumas coisas de Francisco António de Almeida, mas nunca cantei. Mas há o fado, que é uma maravilha! O José [Fardilha] passa o tempo a cantar fado e vou experimentando. Gosto muito, mas claro que não sei cantar fado, só canto em casa, quando ninguém ouve.

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