Arte nazi Pedidos de devolução

Os museus alemães não se devem precipitar na devolução de obras de arte roubadas ou confiscadas durante o período nazi, disse ontem o ministro da Cultura alemão. Não está em causa a restituição aos legítimos proprietários, mas evitar que as obras alimentem o mercado. E o próprio interesse dos museus?
Por Helena Ferro de Gouveia, Bona

O ministro de Estado da Cultura alemão, Bernd Neumann, e directores de museus e juristas concordaram ontem, numa "reunião de crise", em criar um grupo de trabalho para analisar a avalanche de pedidos de restituição de obras de arte roubadas ou adquiridas de forma suspeita pelo regime nazi.Após o encontro na Chancelaria Federal, em Berlim, Nauman disse que se está a tentar encontrar uma maneira de resolver estes pedidos de forma satisfatória para os herdeiros lesados, mas evitando que as obras de arte alimentem um mercado artístico voraz - em causa está, como já aconteceu, a sua comercialização imediata. Berd Neumann reclamou "mais transparência e menos precipitação nas devoluções".
Sob anonimato, alguns responsáveis por museus confrontados com pedidos de restituição afirmaram ao PÚBLICO que algumas das partes envolvidas - advogados das vítimas, marchands e coleccionadores privados - estão mais interessadas nos milhões em jogo do que na moral.
Foi já marcado um novo encontro, para 4 de Dezembro, com a Jewish Claim Conference e outras organizações representando os lesados.
O caso Kirchner foi a bola de neve que pôs a rolar a avalanche. A obra Berliner Strassenszene, de 1913, do expressionista alemão Ernst Ludwig Kirchner, foi vendida, a 9 de Novembro, ao multimilionário americano Ronald Lauder por 29,6 milhões de euros. Isto apesar dos protestos e das dúvidas que levantou a restituição pelo museu berlinense Brücke desta pintura à neta do anterior dono, o coleccionador judeu Alfred Hess.

O dilema alemão Com a mudança de mãos deste ícone do expressionismo alemão, abriu-se na Alemanha o debate sobre as dificuldades germânicas em lidar com este aspecto singular do passado nazi. "Os responsáveis pelas decisões acerca das obras de arte, sejam directores de museus sejam políticos regionais estão perante um dilema", constata a revista Der Spiegel. Enfrentam os descendentes de vítimas do regime nacional-socialista e o interesse público de manter as obras nos museus alemães.
"A questão da restituição é complexa porque muitas vezes estas obras estão penduradas em museus e o direito dos donos tem de ser respeitado, por outro lado é do interesse público que tesouros nacionais continuem disponíveis para o público em geral", afirmou Thomas Steg, porta-voz do governo alemão.
A venda de Berliner Strassenszene aumentou a pressão sobre os directores dos museus alemães. Segundo peritos, cerca de 100 obras de arte do expressionismo alemão poderão acabar nas mãos de coleccionadores, porque os herdeiros de anteriores donos de pinturas de Kirchner, August Macke, Lyonel Feininger e Franz Marc solicitaram a sua devolução. Exemplos; à Staatsgalerie de Estugarda foi pedida a restituição de obra Die kleinen blauen Pferde, de Marc, de 1911; ao Museu Wilhem-Hack foi solicitada a pintura Das Urteil des Paris, de Kirchner; e ao Museu Sprengel em Hannover a devolução de Katze hinter einem Baum, de Marc. Mais de uma dúzia de museus e galerias germânicas poderão ser afectadas.
Num acordo de Dezembro de 1998, na Conferencia de Washington, o próprio governo alemão comprometeu-se a entregar obras de arte aos descendentes de vítimas do regime nazi. No documento de 11 pontos, assinado por 44 Estados, diz-se que obras de arte confiscadas durante o regime nacional-socialista têm de ser procuradas, identificadas e determinado o seu legítimo herdeiro, e com este(s) deve ser procurada uma "solução justa". Martin Roth, director das Galerias de Arte Pública de Dresden, diz que foram devolvidas 800 peças desde 1991.
No caso das obras em museus foi estipulado que, quando compradas durante o período nazi, os museus devem provar que pagaram um preço de mercado justo e também apresentar recibos do mesmo. Muitos destes documentos foram destruídos durante a Segunda Guerra e alguns deles nem sequer chegaram a ser emitidos.
As boas intenções do documento foram entretanto ensombradas pelas suspeitas. Muito peritos apontam que alguns dos actores de Washington tinham interesses que vão muito para além da reposição da justiça. Na Chancelaria Federal, conta a Der Spiegel, depois de passar a pente fino velhos registos chegou-se ao nome de um homem com múltiplas "missões". Trata-se de um mais prodigiosos coleccionadores de arte a nível mundial. Ronald Lauder, de 62 anos, o herdeiro do império da cosmética de Estée Lauder. Este multimilionário judeu, cuja família tem raízes na Áustria, também era o tesoureiro do Congresso Mundial Judaico, que fundou uma "Comissão de Recuperação de Arte". Os diplomatas alemães descobriram que a pessoa por detrás desta comissão tinha sido imposta por Lauder.
Foram preciso muitos anos para perceber o seu verdadeiro envolvimento, especialmente no apoio aos esforços de herdeiros de cinco pinturas de Gustav Klimt que estavam nas mãos do Governo austríaco. As pinturas acabariam por ser, legitimamente, restituídas. Em Junho Ronald Lauder comprou uma delas, Adele Bloch Bauer I, por 82 milhões de euros - as outras quatro foram vendidas no maior leilão de sempre, a 9 de Novembro. No mesmo leilão em que o coleccionador juntou ao seu museu privado a pintura Berliner Strassenszene, de Kirchner.
A recusa sistemática do Fundo J. Paul Getty em devolver a Itália uma escultura de Afrodite e outras peças que as autoridades de Roma consideram resultar do tráfico de antiguidades levou Itália a ameaçar o museu americano com um "embargo cultural sem precedentes", diz o jornal LA Times na sua edição on-line. Itália garante que vai deixar de emprestar peças ao Museu J. Paul Getty e que não vai autorizar, sequer, que pessoas ligadas ao museu façam qualquer tipo de investigação no país. Museus, monumentos e sítios arqueológicos vão ficar inacessíveis ao Getty. As negociações entre o museu americano e Itália começaram em Janeiro e já levaram à devolução de 26 objectos, entre os quais uma importante escultura do deus Apolo e outra representando dois grifos devorando um veado. Mas falta ainda restituir 21 peças: no topo da lista está uma estátua de Afrodite e outra de um jovem atleta. "Basta", disse um representante cultural italiano numa entrevista recente à imprensa americana. "Não aceitaremos soluções parciais. Vou sugerir ao Governo italiano que aplique sanções culturais contra o Getty, suspendendo toda a cooperação." O Getty reconhece que há um impasse, mas garante que ainda é possível encontrar uma solução. Desde que começou a sua campanha pela restituição de obras junto dos museus americanos, Itália já recuperou dezenas de artefactos. O Museu Metropolitan, de Nova Iorque, e o Museu de Boston são duas das instituições que já chegaram a acordo. Marion True, ex-conservadora do Museu Getty, continua a ser julgada em Itália por alegada associação ao tráfico de antiguidades.
A recuperação de tesouros arqueológicos ganhou um novo fôlego, depois de o Governo grego ter conseguido este mês recuperar mais um fragmento de mármore da Acrópole ateniense. A peça, que pertencia ao templo de Erecteion, foi levada da Grécia há um século por uma família sueca. A devolução do fragmento simboliza uma nova esperança para a recuperação das esculturas de Parténon. Para Freddie New, porta-voz do comité britânico para reunificação dos mármores, "a devolução voluntária representa uma mudança de atitude, a nível internacional". Os gregos reclamam há 20 anos, e até hoje sem êxito, a restituição pelo British Museum dos chamados "mármores Elgin", obra-prima da escultura da Antiguidade Clássica. Os mármores, do friso oriental do Parténon, receberam o nome do embaixador inglês no Império Otomano, que os levou para a Inglaterra em 1806. Elgin vendeu-os ao Governo inglês, que os ofereceu ao Museu Britânico. Desde os anos 80, a Grécia tem desenvolvido uma campanha diplomática pelo seu regresso. Apesar dos esforços, o Museu Britânico continua a recusar devolvê-los, alegando que foram obtidos de uma forma legítima e que em Londres estão inseridos no contexto da história do mundo.

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