A mulher dos grandes autores de teatro

Nasceu, cresceu, amou e sofreu com o teatro. Uma vida inteira. Os textos, os actores, o palco e as luzes foram o essencial da sua existência. Luzia Maria Martins foi uma das figuras mais vigorosas da cena teatral dos anos 60 e 70. Fundou o Teatro Estúdio de Lisboa. Divulgou em primeira mão autores geniais. Estreou-se com uma Joana D'Arc, a peça "Joana de Lorena" de Maxwell Anderson. Uma lutadora até ao fim. Morreu há dois dias.

Foi a maior divulgadora de dramaturgos estrangeiros nos anos 60 e 70 em Portugal, nomeadamente os ingleses: Wesker, Bond, Shaffer, Osborne. Foi encenadora e directora artística da companhia que fundou em 1964, com a actriz Helena Félix, o Teatro Estúdio de Lisboa (TEL), a primeira companhia independente da capital. Escreveu também textos que marcam a dramaturgia portuguesa deste século como é exemplo "Bocage, Alma Sem Mundo", um êxito na altura. Luzia Maria Martins morreu quarta-feira no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, com 73 anos, após doença prolongada. O funeral realizou-se ontem, em Benfica.Luzia Maria Martins - 25 anos de carreira - lutou incansavelmente contra a Pide e a censura. Rasgavam-lhe textos, proibiam-lhe peças, cortavam-lhe falas inteiras, ameaçavam fechar o teatro. Mas a sua persistência era inabalável. Acabava por estrear desse por onde desse. O TEL foi um dos símbolos da oposição cultural à ditadura. Das suas mãos saíram autores como Giraudoux, Duras, Strindberg, Bennet, Tchekov, Piscator, Havel, entre outros. Mas os tempos mudaram e acabou por ser "vítima" do pós-25 de Abril devido à ausência de apoios económicos para o seu projecto. A necessidade de competição, de conquistar subsídios, de se adaptar às regras do jogo, de se enquadrar politicamente no PS ou no PC - Luzia era apenas do MDP/CDE e por simpatia com amigos - foram fardos que ajudaram a matar o TEL. O poder nunca gostou do teatro. Mas a machadada final foi a morte de Helena Félix em 1991. Luzia Martins nunca se refez dessa perda. A seguir, a sala do TEL, o Teatro Vasco Santana, foi entregue a uma produtora televisiva e transformado em estúdio. Foi o vazio.Desligada do meio teatral, Luzia Maria Martins teve a sua última aparição em 1998, na sala estúdio do D. Maria II, com a encenação da peça "Frida e a Casa Azul", de José Jorge Letria, sobre a pintora mexicana Frida Khalo. Para o dramaturgo Luis Francisco Rebello, toda a actividade de Luzia Martins esteve ligada ao TEL e à importância que a companhia teve na divulgação de grandes autores mundiais: "Penso que ela nunca teve a audiência que merecia. Era essencialmente uma encenadora e uma directora de companhia, mas como dramaturga também escreveu textos muito bons, como 'Bocage, Alma Sem Mundo' ou 'Anatomia de uma História de Amor'. Era uma lutadora que teve imensos problemas com a Pide e com a censura, com proibições sistemáticas". Foi o caso de "A Cozinha" de Arnold Wesker ou de "Victor ou as Crianças no Poder" de Roger Vitrac."Uma mulher de grande pulso, muito inteligente e muito britânica", foi deste modo que o encenador Carlos Avilez a caracterizou. E também a mulher que mais impulsionou o teatro independente em Portugal: "Lembro-me de 'O Lar' de Storey e de 'O Cerejal' de Tchekov, duas grandes peças e do seu 'Bocage, Alma Sem Mundo'. Ela tinha uma forma muito especial de se entregar ao teatro e foi muito importante para todos nós". Avilez estreará, dentro de dias, a peça "Real Caçada ao Sol" de Peter Shaffer, curiosamente a peça com que Luzia Martins desejava inaugurar o TEL. Só que foi proibida pela censura. Luzia Martins nasceu em Lisboa, oriunda de uma família com tradição teatral. O pai era o cenógrafo Reinaldo Martins, o avô foi o primeiro electricista de teatro em Portugal. Tinha seis anos quando entrou pela primeira numa peça, no Politeama. Na década de 50, conciliava o teatro com a rádio e o jornalismo. Trabalhou com actores como Maria Matos, Alves da Cunha e Assis Pacheco. Decide partir, entretanto, para Londres, onde trabalhou como funcionária da BBC.O TEL estreou-se, em 1964, com a peça "Joana de Lorena", de Maxwell Anderson. Em 1967, estreia o seu primeiro original, "Bocage, Alma sem Mundo".Pelo TEL passaram destacados actores como João Perry, Glícinia Quartim, Lia Gama, Carlos Paulo, João Guedes, José de Castro, Anna Paula ou Adelaide João. Ao longo da sua carreira, Luzia Maria Martins recebeu diversos galardões como o Prémio António Pinheiro, em 1969, para o melhor Encenador do Ano ou o Prémio da Crítica, pela sua encenação de "Lar" de David Storey, em 1970.

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