A dança contemporânea ultrapassou o complexo do folclore

Na Capital da Cultura cruzam-se dois mundos até aqui distantes. Filipa Francisco e o grupo folclórico da Corredoura estreiam hoje o segundo capítulo de A Viagem. Daqui a uma semana, será o encontro de Clara Andermatt com um rancho local

Há alguma coisa a mudar na relação da dança contemporânea com o folclore português. Os dois mundos viveram décadas sem se olharem, mas o tempo em que andavam de costas voltadas pertence ao passado. As coreógrafas Filipa Francisco e Clara Andermatt estão a trabalhar com ranchos folclóricos na Guimarães 2012. E têm vontade de alargar os cruzamentos com a tradição durante o próximo ano. "Já não era sem tempo", exclama a especialista Luísa Roubaud.

Durante anos, o país viveu com "um complexo em relação ao folclore", diz Luísa Roubaud. Ao contrário do que acontece noutros países europeus, em que as danças contemporânea e tradicionais têm tido uma relação de proximidade, em Portugal isso nunca aconteceu. Há razões para isso. As danças folclóricas eram vistas "como uma coisa pirosa" e havia uma questão política a resolver. "O folclore era marcadamente uma herança do Estado Novo, que o branqueou e estereotipou", refere esta investigadora do Instituto de Etnomusicologia da Universidade Técnica de Lisboa e crítica de dança do PÚBLICO.

Nos países do Leste da Europa, por exemplo, onde os regimes autoritários também sublimaram essa tradição, a relação que mantêm com as manifestações artísticas contemporâneas faz-se hoje de forma mais pacífica. Mas, em Portugal, depois do 25 de Abril, as danças tradicionais não tiveram vida fácil, acabando por sobreviver apenas à custa do "mercado independente" que construíram junto da diáspora.

O país precisou de um "período de luto" em relação ao folclore, que está "finalmente resolvido", continua Luísa Roubaud. Foi um pouco o que aconteceu com o Fado, que foi reabilitado. O folclore, pelo contrário, esteve quase sempre afastado das grandes iniciativas internacionais que Portugal acolheu, como a Expo 98 ou as Capitais da Cultura de 1994 e 2001.

Na Lisboa 94, a coreógrafa Clara Andermatt foi convidada a trabalhar o folclore de Cabo Verde, com Paulo Ribeiro. A relação com o arquipélago africano durou sete anos e, depois disso, Andermatt interrogou-se sobre por que não fazer algo do género em Portugal. Mas esse foi um projecto "sempre adiado" conta uma das pioneiras da nova dança portuguesa ao PÚBLICO. Apesar de manter a intenção de olhar para o folclore a partir da sua linguagem, ficou à espera até 2009.

Nessa altura, o Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra (GEFAC), convida-a para um trabalho de cruzamento do folclore com a dança tradicional. "Esse foi o primeiro contacto, que resultou da vontade que eu já tinha. Em Guimarães voltei a explorar o mesmo", recorda Clara Andermatt. Este mês, pegou em alguns dos elementos desse primeiro projecto - o coordenador musical Luís Pedro Madeira e a banda Macademe - e foi para Guimarães trabalhar com o grupo folclórico da Casa do Povo de Serzedelo. E está a preparar, para 2013, um novo espectáculo em que quer "fazer tudo ao contrário". "Vou trabalhar com bailarinos profissionais, mas a peça será baseada nas danças tradicionais."

Dentro de uma semana, Clara Andermatt apresentará o resultado do trabalho que está a realizar em Serzedelo. O Vira como a vida será apresentado no largo da Mumadona (22h), e faz parte do espectáculo de rua itinerante Tempo de criar, pensado pelo Centro de Criação para o Teatro e Artes de Rua e pelos catalães La Fura dels Baus, para assinalar a entrada do segundo momento do programa da Guimarães 2012.

Se as anteriores Capitais da Cultura esqueceram o folclore, a de Guimarães tem sublinhado a ligação à comunidade e tradições locais. E foi nesse sentido que Filipa Francisco foi convidada a integrar a programação do evento. A coreógrafa estreia hoje (22h, Caixa Negra da fábrica Asa), o segundo capítulo de A Viagem, o projecto com que pretende explorar a relação da dança contemporânea com as danças tradicionais.

O nome do espectáculo nasce como referência à viagem à Palestina que mudou a forma de Filipa Francisco olhar para o folclore. A coreógrafa esteve em Ramallah a trabalhar com um grupo de dança tradicional e contemporânea e, no regresso, pensou que tinha muito a fazer em Portugal. "Era completamente ignorante e há muito para descobrir", conta.

Criou o conceito deste espectáculo na sequência da investigação que fez à volta do folclore português. Daqui resultou uma partitura coreográfica, em que mistura a dança contemporânea e a dança tradicional.

A Viagem teve um primeiro capítulo de Outubro, no festival Materiais Diversos, como resultado do trabalho o Grupo Folclórico dos Riachos (Torres Novas). Em Fevereiro, Filipa Francisco rumou a Guimarães. E chegou à Corredoura, que é uma idiossincrasia minhota. O sítio é difícil de definir: não é uma freguesia, antes uma localidade integrada na vila de S. Torcato, seis quilómetros a Norte do centro da cidade. Mas tem uma identidade própria, marcadamente rural e associada a algumas culturas tradicionais da região, desde logo o linho.

Foi lá que Filipa Francisco viveu nos últimos meses e se encontrou com o Grupo Folclórico da Corredoura, fundado em 1956, um dos mais reconhecidos e premiados da região. O grupo tem quase 50 pessoas, entre os 10 e os 70 anos. Empenharam-se de tal forma que a coreógrafa decidiu dar-lhes o palco todo. "O que acontece aqui é que as pessoas tiveram tal liberdade e um tal prazer em improvisar que arriscamos mais", ilustra. Todos os intérpretes estão em cena do início ao fim e a partitura original acolheu os gestos e as histórias das pessoas da Corredoura.

A Viagem vai continuar em Santa Maria da Feira, no festival Imaginarius, nos dias 26 e 27 de Maio, com dois grupos de folclore locais, e chegará ao País de Gales no Verão, num projecto associado aos Jogos Olímpicos de Londres.

Clara Andermatt e Filipa Francisco representam duas gerações da dança nacional. E apesar de estarem a cruzar-se neste novo interesse pelas danças tradicionais, fazem-no de forma diferente. Andermatt prefere manter quase intacta a tradição. Escolheu as danças entre o reportório do grupo de Serzedelo, mudou-lhes alguns detalhes, colocou alguns pormenores em evidência. "Mas sem de maneira nenhuma fugir ao lado extremamente interessante e forte da raiz", explica. Pelo contrário, o projecto de Filipa Francisco tenta "fazer um encontro e criar um mundo que já não é nem de um lado nem de outro".

De uma forma ou de outra, esta zona de contacto entre as danças contemporânea e tradicional é um "território pouco desbravado", acredita Luísa Roubaud. Para a investigadora "há aqui espaço para aparecerem linguagens novas que não estão a ser exploradas". Tanto mais que em momentos de crise as pessoas ficam mais abertas a manifestações que reforcem a auto-estima colectiva. "Não é uma casualidade o facto de estes projectos estarem a acontecer agora.

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