Orfeu alegre

Foto
cortesia culturgest / Laurent Philippe

Orphée

De José Montalvo e Dominique Hervieu Lisboa, Culturgest, 16 de Dezembro, sala cheia

Na sua última criação apresentada em Portugal, a dupla francesa Montalvo-Hervieu faz uma referência à história da mitologia grega sobre o semideus Orfeu e retoma os princípios fundadores do seu trabalho.

Previsível para uns ou novidade para outros, mostra-se aqui uma dança poliglota, que articula a dança ocidental erudita (clássica e contemporânea), a dança tradicional (derivada de origens dos bailarinos) e a dança urbana (de rua e de discoteca), representativa das manifestações populares e de lazer. O potencial virtuosismo destas influências que criam uma linguagem única é sistematicamente explorado, proclamando-se uma possível igualdade e um discurso inclusivo, que está perfeitamente construído e oleado. Tal é visível na sequência de movimentos numa frase de grupo, mas também em solos de diferentes bailarinos que se conjugam. Porém, é de forma desigual que o elenco da companhia, quase todo renovado, consegue responder à exigente complexidade coreográfica que acumula ainda uma forte expressão teatral e que, não raramente, aparece exagerada e naif.

Também surpresa digna de assombro ou prazer de reencontro, a enorme projecção de vídeo, no fundo do palco, mantém o papel de criar cenários fantasiosos onde se dão relações impossíveis de lugares, atmosferas e escalas, conferindo dimensão onírica à realidade do palco. Paris à beira do Sena, o fundo do mar e paisagens campestres são habitados por pessoas e animais num trabalho impecável de captação e edição com técnicas de cromaqui e layering. A imagem exuberante é como um mundo paralelo, físico ou psicológico, que aumenta o significado do que está em cena ou lhe dá eco, como fazem os duplos a preto e branco que dançam em simultâneo com os seus bailarinos originais. A interacção destes dois planos é contudo mais frágil, já que a acção do ecrã se impõe e corresponde pouco às danças, cantos e acções que se fazem em palco.

Nesta obra é pena que a história e o drama de Orfeu sejam só aflorados e vagamente difundidos; o tom maior, muito festivo, desmistifica e diverte com o espelho de um mundo ideal. Menorizando o perigo de destruição irreversível, pelo descuido que a tentação do amor pode justificar, Montalvo e Hervieu elogiaram a determinação em vencer obstáculos e relembraram a presença do divino no que é terreno. Um exemplo é a dupla representação do herói: o Orfeu humano precisa de muletas para andar, mas supera-se na dança, lutando com as suas limitações; o Orfeu divino dança com andas e, quando se lança em saltos mortais para a plateia, parece ter poderes sobrenaturais.

Apresentada nas festividades da época natalícia, a peça valoriza-se pela qualidade e capacidade da dança dialogar com o grande público; é também uma boa prenda para animar o espírito desmoralizado pelos cortes financeiros de 2012 que ameaçam o futuro desta arte em Portugal.

Paula Varanda

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