Afinal, a maior parte da obra de Hélio Oiticica sobreviveu ao incêndio

Contrariando as piores expectativas, cerca de 80 por cento das obras guardadas na casa dos herdeiros está "em excelente estado"

Mais de 1500 obras, entre objectos, guaches, desenhos, serigrafias e fotografias: afinal, cerca de 80 por cento das mais de duas mil obras e documentos do artista plástico brasileiro Hélio Oiticica, guardados na casa de família que ardeu em Outubro, foram recuperados dos escombros e "estão em excelente estado", disse esta semana ao P2 Mário Chagas, número dois do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), à frente da operação de emergência em curso desde os dias que se seguiram ao incêndio.

Foi a 16 de Outubro. César Oiticica, um dos irmãos e herdeiros de Hélio, diz que estava a jantar com amigos quando ouviu barulhos estranhos vindos do primeiro andar da casa que foi em tempos do seu pai, no Jardim Botânico, perto de Ipanema e do Leblon. O corpo de bombeiros chegou em cerca de 20 minutos, mas precisou de três horas para extinguir as chamas. Nessa mesma madrugada, em lágrimas, César declararia a perda de cerca de 90 por cento de tudo o que estava guardado, um conjunto que a família estimou representar uma perda financeira na ordem dos 130 milhões de euros, tudo por segurar. O Brasil de luto, portanto, perante o desaparecimento do legado de um dos nomes maiores das suas artes visuais.

"Foi o trauma, o choque do momento", diz Mário Chagas, sublinhando: "No primeiro momento parecia uma perda total, mas isso não é verdade. As obras estavam muito bem acondicionadas. O incêndio foi grave, mas foi a água que fez o maior dano e como actuámos de imediato e o Hélio usava materiais de grande qualidade esses estragos puderam ser minorados."

Segundo este responsável, perdeu-se, lamentavelmente, uma obra tão especial como a escultura O Grande Núcleo n.º 1 (pensada para receber o público no seu interior). Perderam-se ainda todos os Parangolés (capas de tecido colorido para usar) que estavam neste acervo, bem como cerca de duas dezenas de Bólides (pequenas esculturas manuseáveis). Mas salvaram-se, por exemplo, 246 metaesquemas (guaches sobre cartão que o artista fez ao longo de toda a sua vida e de que há exemplares em museus como o MoMA, de Nova Iorque, e o MALBA, Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires - há exactamente um mês, e um mês após o incêndio, a Christie"s leiloou um destes pequenos guaches, datado de 1957, por 85 mil euros, quando a sua expectativa máxima de venda era de menos de metade desse valor.

Salvas estão também 139 obras do Grupo Frente, criado em 1954 pelo artista carioca Ivan Serpa com alguns dos seus amigos e alunos, incluindo Oiticica, 752 documentos variados e obras sobre papel - cartas, desenhos, serigrafias, etc. -, 404 fotografias e 93 objectos. Um conjunto agora a ser restaurado em esforço conjunto do Ibram com o Arquivo Nacional brasileiro e Projecto Hélio Oiticica (presidido pelos dois irmãos e herdeiros do artista), diz Mário Chagas.

Ironia e indefiniçãoA ironia de uma quase-tragédia que poderá vir a mudar a museologia brasileira: por fim conseguiu uma colaboração entre a família de Oiticica e o Estado brasileiro, envolvidos há anos em polémicas e braços-de-ferro por causa do destino a dar ao legado de um dos mais originais artistas do século XX, um dos mais importantes e transgressores nomes do movimento neoconcretista do Rio, tido como o arranque da contemporaneidade brasileira, com desdobramentos ideológicos tão populares e fundamentais para o forjar de uma identidade nacional como o Tropicalismo de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tom Zé.

"Pelo menos, pudemos aprender com esta experiência, tirar dela ensinamentos para fazer um maior investimento em termos de conservação e salvaguarda da nossa arte moderna e contemporânea", explicou ao P2 o número dois do Ibram. "Agora, estamos a articular forças. Fizeram-se reuniões com directores de museus, artistas, curadores. O nosso ministro da Cultura esteve no Museu de Arte Moderna do Rio com eles. As reuniões vão permitir desenhar um amplo projecto de investimento que em breve poderá ser divulgado. No último dia 3, o Ministério da Cultura já anunciou um fundo nacional de desenvolvimento de museus..."

Mas nem tudo está nas mãos do Estado. É preciso a vontade também das famílias e herdeiros dos artistas brasileiros, que em casos tão conhecidos como o de Lygia Pape e Lygia Clark detêm os direitos das obras.

No caso de Hélio, César e Cláudio, tinham entrado no primeiro semestre do ano em ruptura com o Centro Municipal Hélio Oiticica, criado pelo município do Rio de Janeiro em 1996 supostamente para receber em depósito permanente o legado do artista, responsabilizando-se pela conservação, estudo e divulgação da sua obra. A relação entre o centro e o Projecto Hélio Oiticica, dos dois irmãos, foi tensa desde o início, com a polémica a estalar de vez no princípio do Verão, quando César e Cláudio, alegando falta de condições técnicas no edifício do século XIX e uma dívida de 100 mil euros, retiraram do espaço a maioria das obras. Transportaram-nas para a reserva que arderia em Outubro.

Apesar da actual colaboração, o destino definitivo a dar ao legado agora em restauro é "o ponto mais delicado" da questão, reconhece Mário Chagas. Decidido está, diz, apenas um passo: uma exposição itinerante, marcada para 2010. "Com tudo isto, ficou claro que a maioria das cidades [brasileiras], à excepção do Rio e São Paulo, ainda não conhecem a obra de Hélio Oiticica."

A exposição arranca em Brasília, que no próximo ano celebra meio século e que nasceu no mesmo contexto sociopolítico que a obra de Oiticica.

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