Vítor Gonçalves, cineasta para todas as estações

Vinte e sete anos depois da sua estreia, Vítor Gonçalves regressa à visibilidade. Falando da vida juntos dos mortos. A Vida Invisível passa hoje no Festival de Roterdão.

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No momento de começar a rodar o seu primeiro filme em 27 anos, Vítor Gonçalves sentia-se como se tivesse filmado na véspera Enric Vives Rubio
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Cena de A Vida Invisível
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“Pensar nos mortos-vivos, nas pessoas que estão objectivamente vivas, mas que não se sentem vivas" foi o ponto de partida de A Vida Invisível
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João Perry entra nos dois filmes de Vítor Gonçalves
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Uma coincidência oportuna fez com que a rodagem decorresse na altura das obras de requalificação do Terreiro do Paço, em 2010

No momento de rodar o primeiro plano de A Vida Invisível, Vítor Gonçalves teve a “absoluta sensação” de que filmara na véspera. Na realidade, a véspera para ele, a sua longa-metragem anterior, a primeira, aconteceu há 27 anos. Chamou-se Uma Rapariga no Verão (1986). Foi a sua estreia, em anos que foram também de primeira vez para Pedro Costa (O Sangue, 1989 – ainda assistente de realização no filme de Gonçalves) ou Teresa Villaverde (A Idade Maior, 1989). Isso foi sentido como o anúncio de uma geração. Mas perante “a força desse sentimento” de que um realizador sempre esteve “presente” ali, que esses 27 anos foram apenas ontem, a chamada realidade é só um conjunto de contingências. Não consegue medir forças com esse sentimento de “presença”. Não há verdade mais justa, então, do que apelar ao sentido do “misterioso” ou do “inexplicável”, concede o realizador, 62 anos, para falar da sua vida com os filmes. Para dar conta do que se passou nessas mais de duas décadas depois de um títul

“É como se houvesse qualquer coisa de misterioso e de assustador no design da minha vida no cinema. Talvez falar desse ponto de vista, do ponto de vista do fantástico, seja uma forma mais profunda para dizer porque é que estive tanto tempo sem filmar. Para dizer o que fiz com o tempo da minha própria vida. Isso é o Hugo.” Hugo é o nome da personagem de A Vida Invisível, a segunda longa-metragem de Vítor Gonçalves, filme com que o realizador anda neste momento pelos festivais internacionais: esteve no Festival de Cinema de Roma, está hoje no Festival de Roterdão.
Hugo (Filipe Duarte) prefere as sombras à luz, gosta mais dos mortos do que da companhia dos vivos – é o que lhe diz Adriana/Maria João Pinho, que é também uma vida que Hugo deixou escapar. Foi esse o princípio do projecto, diz o realizador: “Pensar nos mortos-vivos, nas pessoas que estão objectivamente vivas, mas que não se sentem vivas – como se a vida não estivesse ao seu alcance, como se sentirem-se vivas não estivesse ao seu alcance. É uma sensação que temos tantas vezes na vida...”
A relação de Hugo com os espaços que respira – se calhar são os espaços que já absorveram o tempo de Hugo – é das coisas mais misteriosas em A Vida Invisível. Aí o filme revela-se: sim, é verdade, Vítor Gonçalves apenas não filmava desde a véspera. É mais misterioso dizer isso do que dizer que em 27 anos um cineasta não perdeu a mão.
“Era importante trabalhar os espaços ao longo do filme para sentirmos que eles existem por si e que uma personagem tem uma relação particularmente sensível com eles – Hugo deseja ficar sozinho, afastado das pessoas vivas, e é nesse momento, na sua solidão, que vive à sua maneira.” Ao filmar cenas que aparentemente são comezinhas, entradas em casa, o sentar-se numa sala, por exemplo, Vítor Gonçalves configurou o seu “horror ao naturalismo”, à concepção dos espaços como décor para a mera verosimilhança de uma personagem ou de uma acção. Mas quando se chega ao "como é que fez?" é preciso apelar aos fantasmas. “Numa primeira instância, interessa-me a minha relação com o espaço, não estou a pensar em narrativa alguma – não preciso de um corredor porque o herói vai passar por um corredor. É isso que faz com que um espaço adquira uma presença e uma realidade. Só no segundo momento é que pensei no actor Filipe Duarte [intérprete da personagem de Hugo] naquele espaço. Mas não sou senhor daquilo que sinto. Fica uma espécie de enigma com o qual vou trabalhando. Há planos em A Vida Invisível que são planos de um filme secreto, de um outro filme, que eu rodei para além daquele que estava a rodar, e que só depois, ao serem integrados, adquiriram sentido. Aconteceu muitas vezes a cena estar a ser feita num determinado sítio e eu pegar na câmara para filmar, por exemplo, árvores noutro sítio. É como se estivesse a filmar com o sentido em movimento, filmo nesse território.”

Pais e filhos
É decisivo dizer que tudo se passa, maioritariamente, nos corredores e salas de ministérios no Terreiro do Paço, em Lisboa. É aí que trabalha o funcionário público Hugo, e é aí que sabe que o seu superior, António (João Perry), está a morrer. António é uma figura tutelar, espécie de autoridade paterna. Há uma sequência que diz tudo sobre o que os une e como eles se unem: António vai descendo escadas em caracol e vai deixando cair papéis, como se fosse o seu legado, nessa descida atraindo Hugo, cujo impulso deveria ser o de os apanhar. (E o espectador desce com eles, atraído pelo negrume que tacteia o gótico, o medo, a ausência de vida.) Impressionante é recordar Uma Rapariga no Verão – ou forçar essa memória, (re)descobrindo esse filme e ir ao encontro dos fantasmas que a música de Andrew Poppy anunciava desde o genérico inicial, surpreendendo pela insistência, por parecer deslocada naquele tão frágil filme “sobre a adolescência”. Também aí havia alguém, uma rapariga, a estrebuchar perante o património de sonhos e quimeras dos “pais”: a severidade febril, monstruosa, deles ameaçava sufocá-la. Nesse filme já existia João Perry, mas fazia um “filho”, alguém que, de carabina na mão e pantera enjaulada trazidas das Áfricas, tinha sido definitivamente engolido pelas fantasias do pai, não lhe restando outra coisa senão a loucura; era um pedaço de Jacques Tourneur (“Nos meus tempos de escola eu era um obcecado pela série B”, confirma o realizador) cruzado com o que hoje pode ser delirante ler como um prenúncio do Tabu de Miguel Gomes. Estava-se em 1986, e Vítor Gonçalves (não é segredo, “um filho”, de Vasco Gonçalves, primeiro-ministro durante o PREC) escolhia olhar para a História do ponto de vista da sua protagonista: vendo algo de distorcido, uma febre, mas qualquer coisa de que ainda sobrava um movimento. Já nada resta. Em A Vida Invisível o cineasta também toma as suas distâncias, mas o político e o social são apenas vestígios, como aquilo que se encontra numa exumação – uma coincidência espantosa fez com que a rodagem decorresse na altura das obras de requalificação do Terreiro do Paço, em 2010, o que permitiu ao realizador pontuar a aventura interior de Hugo nesse décor de representação política que é esventrado. É a vida interior num cenário morto, num cenário de mortos. Isto para dizer, finalmente, que se estes dois filmes estão separados por 27 anos, Uma Rapariga no Verão e A Vida Invisível falam um com o outro e um sobre o outro como se um deles tivesse sido feito na véspera, o outro no dia seguinte.
O que seria Vítor Gonçalves sem os seus 27 anos de vida invisível?
“A escola obrigou-me a pensar continuamente o cinema. Acho que o que se tornou mais importante para mim nos últimos anos foi eu ter encontrado uma forma de dar aulas que permitisse uma reflexão sobre os filmes” – é professor na Escola Superior de Cinema. “Passei a privilegiar uma relação muito próxima com os filmes, com os planos, com o que está a acontecer. É uma relação com os alunos mais viva, mais intensa, por oposição à ideia clássica de uma matéria que está a ser transmitida – porque há certos problemas que não conseguimos pensar sozinhos. Fazer um filme é também pensar o cinema, mas de uma forma que não é explicável. E é essa vivência que é insubstituível. Se não tivesse feito filmes, continuaria a reflectir sobre cinema. Mas o que é extraordinário é a vivência daquilo de que não somos capazes de falar.” Hugo vive em A Vida Invisível. E Vítor Gonçalves é um cineasta para todas as estações.
 
 
 
 
 

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