VGM: o tradutor e o intérprete

1. No final de 2010, precisei de usar para um dos meus escritos uma frase do Hamlet de Shakespeare.

No Verão desse ano, tinha visitado Helsingor, a velha Elsinore, terra da trama e da desventura do príncipe da Dinamarca e essa visita inspirara um regresso atento aos textos do Hamlet. Quando volvidos aqueles meses, repesquei uma das frases que me ficara na memória, dei-me conta de que a tradução portuguesa, cotejada com o original inglês, não me parecia feliz. E sendo totalmente incapaz de encontrar uma melhor, resolvi recorrer ao Vasco Graça Moura.

Há largo tempo que não o via nem falava com ele. De resto, nunca fomos íntimos ou próximos, muito embora tenham sido muitas as ocasiões em que nos encontrámos, em que falámos horas a fio, em que alinhámos cumplicidades e em que trabalhámos em conjunto. Naquela noite, e em busca da tal versão apurada, abalancei-me a enviar-lhe uma mensagem electrónica a pedir uma tradução. Ou melhor, a tradução. Passadas umas escassas duas ou três horas, e apesar de não nos falarmos há muito tempo, tinha já recado e resposta na caixa de mensagens. E a resposta dizia tudo. Dizia tudo sobre o Vasco Graça Moura. Propunha três alternativas, todas respeitando a métrica do texto inglês, uma mais próxima da sonoridade original, outra mais próxima da riqueza do significado, outra a meio caminho. Em cada uma delas, tudo estava justificado com argumentos, tudo estava medido à sílaba e ao efeito sonoro, tudo estava integrado no contexto da obra. Pelo caminho havia ainda explicação para a preferência pelo emprego desta ou daquela palavra em português: uma vinha desta tradição, outra tinha aquela raiz etimológica, uma tinha sido usada por António Vieira, outra era de Sá de Miranda. E havia também a referência às várias edições do Hamlet, às traduções existentes em português e, bem assim, o pedido de desculpas por não ter encontrado duas edições que “hão-de estar algures na biblioteca”, mas que, naquele curto espaço de tempo, não havia logrado encontrar. Este texto escorreito, vazado no formato compressor do correio electrónico, era o Vasco, o Vasco Graça Moura. Em tudo. Em tudo: na erudição cultural, na perfeição técnica, na solicitude humana, na volúpia do “momentum”.

2. Este retalho da vida de Vasco Graça Moura é pobre, é muito pobre para abarcar a grandeza e a variedade dos seus talentos, do seu talento. Mas ao mesmo tempo, na anatomia do instante, daquele instante, é ele todo e todo ele. Porque esse é talvez o traço mais penetrante, cativante e sedutor da personalidade de Graça Moura: o facto de se pôr todo, de se dar todo, de se entregar todo, de alma plena e corpo inteiro, em cada instante, em cada momento, em cada abrir e fechar de olhos. Com ele, um café podia convocar Homero; a chamada de um táxi podia evocar Rabelais; uma mulher que passava podia chamar Rilke. Com ele, uma habilidade política podia trazer Caravaggio; a queda de uma caneta podia transportar Malhoa; o sonar da rádio podia arrastar Van Gogh.  E da pintura podia vir a música e desta sobrevir o teatro e deste emergir a dança e desta ecoar a ópera. Nas coisas mais triviais, estava toda a densidade do mundo, apresentada na mais pedagógica simplicidade, com argumentos plásticos e racionais, que desmontavam a técnica e armavam a estética. Esses instantes – os instantes de Vasco – eram traduções. Traduções de tudo: a tradução da cultura, a tradução da história, a tradução da actualidade, a tradução de uma imagética e de uma estética vinda dos confins e capaz de abarcar a mais contemporânea das realizações.

3. Nestes dias que choram a sua morte, e diante da diversidade inabarcável dos seus talentos, muitos hesitam sobre o campo das artes ou das letras em que verdadeiramente foi genial. Uns preferem o ensaísta, muitos escolhem o poeta, outros elegem o tradutor, alguns visam o romancista, menos apontam o político, vários destacam o gestor cultural. Em todos estes campos das letras, das artes e da vida – das vidas, em suma –, ele se distinguiu e sobressaiu e, em todos eles, mesmo quando não foi genial, ele revelou o génio. Se tivesse de tomar partido, porém, não hesitaria: Vasco Graça Moura era um tradutor, o tradutor. Mas não o tradutor de livros escritos noutras línguas – que iam do italiano ao alemão, do inglês ao castelhano ou ao francês. Não, ele não era apenas o tradutor exímio e absolutamente insuperável de Dante e Petrarca, de Shakespeare e Racine, de Rainer Marie Rilke.

Ele era e foi muito mais do que isso, ela era um tradutor do mundo da cultura. Ele, com a sua acção cultural, cívica e política, com a sua pedagogia mediática, com a captação e a cativação de todos os instantes, fazia traduções. Traduzia o mundo, supostamente longínquo e erudito, da cultura para o universo social e mediático. A sua vocação de tradutor não se realizou apenas na actividade pedestre e fulgurante da versão de línguas; a sua vocação de tradutor revelou-se afinal muito mais profunda e muito mais vasta. Todo o seu exercício cultural, designadamente na sua dimensão pública, foi uma tensão permanente de tradução, de trazer à comunidade o gosto, a paixão e a intelecção do que se passava para lá da cortina da erudição. Num certo sentido, e porque ele a fazia constantemente e em simultâneo com o devir da realidade, Graça Moura traduzia cultura em tempo real. Poeta de condição, Vasco fazia isso e fazia isso de modo genial: traduzia cultura em tempo real. Afinal, bem vistas as coisas, e vendo essa aptidão e apetência para em cada momento, nos traduzir o mundo da cultura, o carisma de Graça Moura não era afinal o do tradutor, mas o do intérprete.

SIM. João Porto. Morreu um cidadão exemplar na dedicação ao país e à causa pública. Um grande especialista em transportes, saído de um escol de engenharia, que deixa mais pobre Portugal e a região Norte.

NÃO. Ucrânia. À medida que o tempo passa e o cenário se agrava, repetem-se os “nãos” neste espaço. Que ninguém adormeça…, a situação é já crítica.

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