Vasco Teixeira: Para um editor escolar, publicar ficção é fácil

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"O livro é um mercado difícil", diz Vasco Teixeira Foto: João Guilherme

Consolidada a liderança no livro escolar, Vasco Teixeira, responsável editorial da Porto Editora, achou que era tempo de apostar noutros domínios. Com a compra da Bertrand tornou-se, aos 55 anos, o rosto de um grupo que emprega 1400 pessoas e deverá facturar, em 2011, 150 milhões de euros. É um apologista da concentração editorial, porque esta evita que a indústria do livro fique nas mãos de estrangeiros e lhe dá melhores condições para enfrentar os desafios do digital

Com a compra da Bertrand, no final de Junho, a Porto Editora, até agora quase circunscrita ao livro escolar, tornou-se o maior grupo editorial português, valendo, em volume de negócios, praticamente o dobro da Leya. Vasco Teixeira, co-proprietário e o seu responsável editorial, diz que vai manter as chancelas, as livrarias e os funcionários da Bertrand. A maior ameaça que vê no futuro próximo é a pirataria informática, que, avisa, pode destruir o mercado do livro, como destruiu o da música.

O pretexto óbvio desta entrevista é a aquisição do grupo Bertrand, mas talvez possamos começar pelo princípio, pela fundação da editora, até porque as circunstâncias em que nasceu ajudam a explicar porque é que se impôs no sector do livro escolar.

Isto nasceu em 1944, de um grupo de professores – acho que eram 19 – que decidiu montar uma editora. O meu pai era um dos mais novos e foi designado para a dirigir. Acumulava a gestão da empresa com as funções de professor universitário de Química. A editora depois foi crescendo muito, mas o ADN na educação, na referência, nos dicionários, vem desde a fundação. O primeiro contrato para dicionários é dos anos 40, e a “História da Literatura Portuguesa”, de Óscar Lopes e António José Saraiva, sai, salvo erro, em 1954. Eu e o meu irmão José António viemos trabalhar para a empresa em 1980. A minha mãe já tinha vindo no início dos anos 50. E quando o meu pai faleceu, em 1987, continuamos com a editora.


Apesar do crescimento, continua a ser mesmo uma editora familiar?

Eu, que sou engenheiro civil de profissão, fiquei com a área editorial a meu cargo, enquanto o meu irmão, que é economista, assumiu a parte financeira e comercial. A minha irmã Graciete só veio nos anos 90. Estava em Bruxelas, nos serviços de língua portuguesa da Comunidade, e tinha sido leitora nas universidades de Poitiers e Estrasburgo. É uma pessoa da área das línguas e do ensino e ficou responsável pelo sector das obras de referência.


Sendo engenheiro civil, o ter vindo parar aos livros foi apenas um acaso ditado pela herança familiar?

Não conheço quase ninguém que entre nos livros que não seja para ficar a vida toda. É um meio hoje difícil de desenvolver do ponto de vista empresarial, mas muito aliciante, e que tanto nos realiza no plano intectual como no sentimental.Veja que mesmo alguns dos proprietários que venderam as suas editoras ao grupo Leya já dão indícios de que estão a ficar com saudades.


Vivo entre livro desde que me lembro, sempre tive atracção por este mundo. E foi com naturalidade que vim para isto depois de ter feito algum percurso profisisonal. Estive na função pública, trabalhei numa empresa, desenvolvi alguma actividade como engenheiro.


Também deu aulas?

Nunca fui professor, mas cheguei a construir várias obras. Era especialista em pontes. Coordenar um projecto de construção civil exige uma boa capacidade de gestão, quer de processos, quer de recursos humanos. Foi uma experiência muito útil.


E considera-se um leitor?

Aprecio muitos tipos de livros, mas tenho pouco tempo para ler. Quase só o faço nas férias. No dia-a-dia é tanto dossier, tanto e-mail, tanta informação, que os quatro ou cinco livros que tenho na mesa-de-cabeceira estão parados. Não sou um leitor exemplar. Até porque cultivo bastante o lado das relações internacionais e, para me forçar a desenvolver o inglês, leio sobretudo nessa língua. Compro “paperbacks” em Inglaterra e leio-os no Verão.


O modelo dos “paperback”, que permite aos leitores ingleses e americanos comprar livros a preço bastante baixo, nunca pegou em Portugal.

É uma questão de escala. Antes de chegar ao “paperback”, o livro passa pelo “hardback” e só seis ou oito meses depois de este ter saído é que os editores exploram outra fatia de mercado, que já tem mais a ver com a compra por impulso, lançando o “paperback”, que tem menos custos de produção e por isso é mais barato. Como Portugal é um país pequeno, não existe massa crítica para os dois mercados. Os editores fazem uma espécie de “hard-paperback”, com formato de “hardback” e encadernação “paperback”. Pouca gente edita livros de capa dura. Nós fizemos uma tentativa, por sugestão do Manuel Alberto Valente, mas já percebemos que não resulta.


Essa segunda vida do livro não foi um pouco o que se tentou fazer com as colecções para quiosque lançadas por vários jornais?

Já foi chão que deu uvas. Aí explora-se mais um efeito de coleccionismo, com a ajuda da autopromoção nos jornais. Mas o comprador do “paperback” não é um coleccionador, é alguém que gosta de ler no metro, ou na cama, e que compra por impulso.


Em 2002, comprou a Areal e a Lisboa Editora, ambas do ramo escolar, mas no início deste ano adquiriu a Sextante, o que já sugeria a intenção de entrar no mercado da ficção, agora confirmada com a compra da Bertrand. E já antes a Porto Editora lançara algumas colecções fora do escolar. Esta estratégia vinha sendo pensada há algum tempo?

Decidimos diversificar para a literatura em 2006 e criámos uma divisão literária. A questão já estava em cima da mesa desde meados dos anos 90, mas fomos privilegiando o desenvolvimento das novas tecnologias. Achámos que não íamos diversificar ao mesmo tempo em duas direcções e optámos pelo multimédia. Temos um centro de multimédia activo desde Março de 1995. Dez anos depois, quando já tínhamos feito 50 ou 60 CD-Rom, dicionários on-line, não sei quantas versões da Diciopédia, entendemos que estávamos preparados para entrar numa área muito diferente da escolar e consolidar uma linha editorial consistente. Criámos então uma divisão literária. Depois a Leya mandou borda fora o Manuel Alberto Valente, que era um dos principais activos da Asa, e tivemos a sorte de ele estar disponível. É uma pessoa com capacidade e experiência acima da média e que se juntou à equipa para continuar a desenvolver as linhas mestras da Porto Editora na área não escolar. Isto foi em 2008; em 2009 comprámos a Sextante, e a seguir veio a Bertrand.


Admitindo que manterá todas as chancelas, quer as que já tinha, quer as do grupo Bertrnand, como é que essa diversidade é compatível com uma linha editorial consistente?

Havia uma linha editorial em 2006 que foi reajustada em 2008, com a entrada de Manuel Alberto Valente, e que voltou depois a ser reajustada com as entradas da Sextante e da Bertrand. Há que articular uma boa coordenação de processos com a manutenção das características das empresas que fomos adquirindo.


Falando agora no negócio da Bertrand…

Não é público, mas a Porto Editora já tinha tentado comprar a Bertrand em 2006 e perdeu para os alemães da Bertelsmann. Mas fomos estando atentos, porque sentíamos que o grupo Bertelsmann, mais tarde ou mais cedo, se iria desinteressar do mercado português, como se veio a confirmar. Ao venderem a Bertrand, fizeram alguma questão de saber quem tinham do lado de lá, que perspectivas havia para aquelas empresas, e quem transmitiu maior fiabilidade foi a Porto Editora.


Está a sugerir que não foi só pagar mais?

Muito provavelmente, não foi. É evidente que o dinheiro pesa muito, mas admito que não faltassem candidatos dispostos a pagar o mesmo que nós.


E quanto é que pagou?

Isso não foi divulgado nem vai ser. Há um acordo de cavalheiros nesse sentido. Saíram por aí uns números, mas nunca os comentámos.


Em 2009, a Porto Editora teve um volume de negócios que rondou os 95 milhões de euros, ligeiramente superior ao da Leya. Pode adiantar que números espera com a entrada da Bertrand?

À volta de 150 milhões. Não duplicámos, mas andamos lá perto.


O interesse da Leya na Bertrand inflacionou o negócio?

Não me parece. A Leya, a certa altura, até disse que desistia. Havia, sim, um interessado espanhol, que ainda hoje não sei quem era.


Parece haver um consenso no sentido de a Leya valer hoje menos do que valiam, no seu conjunto, as editoras que comprou. Como é que vê o futuro do grupo?

Não faço ideia do que vai acontecer. Não gosto de falar dos nossos concorrentes. Uma das vantagens de ter aparecido a Leya foi termos conseguido pacificar o movimento associativo.


Refere-se à reintegração da UEP na Apel?

Sim. A UEP dizia que o que a separava da Apel é que era uma associação de editores, e não de editores e livreiros. Era verdade, mas os editores da UEP e os que ficaram na Apel tinham perspectivas muito similares. E os livreiros sempre foram um parceiro fraco na associação. Basta ver os presidentes, que foram sempre editores, à excepção do período 1999-2000, quando eu fui vice-presidente e a presidente era a Graça Didier, da Livraria Barata. A UEP, nasceu de um grupo que não gostou de perder as eleições por pouco. Como foi tudo limpo e não podiam apontar nada, criaram outra associação. Era como se o PSD perdesse as eleições e fosse montar um país ali ao lado.


Empenhou-se activamente nessa guerra com a UEP.

São águas passadas. Combati activamente a UEP, como combati para esta se fundir com a Apel e não coloquei qualquer objecção a que a direcção da Apel se demitisse para permitir que gente da UEP integrasse os corpos sociais. O presidente da Assembleia Geral é hoje o Pedro Moura Bessa, que foi fundador e presidente da UEP.


Voltando à Leya…

A Leya trouxe algum dinamismo ao mercado, a concentração teve vários aspectos positivos. O engenheiro Pais do Amaral teve o azar de entrar num negócio que vai mudar muito nos próximos anos, com o digital, e numa altura em que o mundo também enfrenta problemas complicados. Ele entrou nisto em 2007, pouco depois de sair da Media Capital, e logo em 2008 começou a crise, que se agudizou em 2009. E em 2010 veio a crise portuguesa. A internacional já está a acabar e agora vem a nossa e vamos ver o que o futuro nos reserva. A Leya teve azar. Era como comprar acções em 2007 e 2008: hoje valeriam metade. Com a crise mundial, o número de potenciais compradores da Leya também se reduziu muito.


O grupo Bertrand tem centenas de trabalhadores. Vai mantê-los?

São 600 e tal a juntar aos 700 e tal que já tínhamos. Faremos uma gestão rigorosa, mas neste momento não vejo razões absolutamente nenhumas para não manter as pessoas. E quase de certeza que manteremos as chancelas com as suas características próprias. Tentaremos apenas limar algumas arestas que nos apercebamos que existam. É um erro pensar que quando se compra uma editora está tudo nas acções ou no edifício. Os recursos humanos são fundamentais para a personalidade das editoras.


Claro que as evoluções do mercado nos hão-de dizer se temos de manter, crescer ou diminuir. Somos uma empresa que reage rapidamente ao mercado, e estamos no início de alguns desafios. Algumas possíveis alterações resultarão, por exemplo, do modo como o governo português lidar com a questão da pirataria.


É uma ameaça grave no sector do livro?

Não no presente, mas para o futuro. Ao contrário do que está acontecer noutros países, onde isto se discute a sério e se fazem leis e se tomam medidas, em Portugal o fenómeno tem pouca visibilidade e não parece preocupar os responsáveis políticos. Quando a pirataria estava só na área da música, os prejudicados eram uns tipos um bocado excêntricos e ninguém se preocupou muito. Mas quando os livros estiverem todos disponíveis em “sites” piratas – e isso vai acontecer nos próximos cinco a dez anos –, deixa de haver autores, editores e livrarias, e as bibliotecas vão passar a chamar-se museus, porque deixarão de ter livros novos. Qualquer pessoa pode digitalizar um livro em casa e pô-lo na Net. Os livros do José Rodrigues dos Santos e do Miguel Sousa Tavares já lá estão todos. As vendas só não foram muito afectadas porque ainda não há muito o hábito de se descarregar romances da Net. É confrangedor ver os músicos na estrada a dar concertos, alguns já quase de bengala, a tentar ganhar algum dinheiro, mas os autores não podem andar pelo país a fazer sessões e a cobrar pelos autógrafos.


Abstraindo dos seus interesses pessoais, acha que este fenómeno de concentração editorial em Portugal é saudável?

Acho que a concentração, num país pequeno como Portugal, é razoavelmente saudável, desde que seja regulada. O livro é um mercado difícil, veja-se as editoras e livrarias que fecham. E temos o desafio do digital. Acho que esta concentração tem mais efeitos benéficos do que prejudiciais. Se a Autoridade da Concorrência tivesse dito que não ao negócio, a Bertrand teria sido comprada por espanhóis e as suas políticas seriam definidas em Madrid. E se amanhã lhes interessasse fechar, fechavam. Com a concentração há maior probabilidade de os grupos editoriais continuarem a ser portugueses.


Sem ela, o mais provável é que passássemos a ter livros portugueses editados no estrangeiro, como já acontece na música ou no cinema.


Tem uma grande experiência no livro escolar, mas agora vai entrar noutro mundo, que implica, por exemplo, competir por autores...

Isso é o mais fácil. Há algum desconhecimento da função do editor escolar, que é de todos o mais polivalente. Tem uma incorporação de valor acrescentado nos livros que publica muito superior ao dos outros editores. Imagine um livro de um autor português conhecido: a editora que o publica pouco ou nada faz. O autor escreve o livro e envia-o por “email”, e provavelmente sugere a imagem para a capa. A editora só tem de contratar um paginador. Se for ficção estrangeira, o editor tem uma intervenção importante na escolha do tradutor e no “editing”. E desempenha um papel muito relevante que é o de fazer com que as obras cheguem ao público. Mas acrescenta pouco aos livros que publica e as competências técnicas que se lhe exigem são restritas. No livro escolar o design é muito mais apurado, porque faz parte integrante do objecto. Por comparação com um livro de ficção, editar um livro escolar custa talvez vinte vezes mais, requer mais tempo e envolve muito mais pessoas. Para um editor escolar, publicar literatura ou ensaio é fácil. O difícil é gerir bem a linha editorial.


No escolar, há ainda o problema de ser necessário imprimir uma grande quantidade de exemplares só para oferta.

A primeira tiragem é só de amostras para os professores analisarem. No mínimo, um livro por escola, e temos quatro mil e muitas escolas no primeiro ciclo e mil e seiscentas no segundo. Mas há escolas que recebem quatro ou cinco livros. No total, são alguns milhares. E hoje já não pensamos um livro escolar sem lhe associar um “site” com conteúdos na internet, o que nos obriga a ter vídeos, animações, slide shows, powerpoints. Veja a distância entre isto e um livro que o autor entrega, eu pagino e imprimo, e está feito.


Mas antes de o autor entregar o original, foi preciso garantir que ele não o entregasse a outro.

Já foi assim.


Não acha que as transferências de quadros entre editoras mostram que há pessoas que ainda fazem a diferença?

Sim, mas porque os autores se sentem confortáveis a falar com alguém em quem confiam, e não tanto pelo valor que essa pessoa possa acrescentar ao livro.


Ainda asssim, com esta abertura a um sector que conhece pior, não ficará mais dependente do conselho de terceiros?

Eu aprendo rápido. E temos um conjunto de gente muito capaz, mesmo na área literária. Os nossos técnicos editoriais estão ao nível do que de melhor existe na Leya e noutras editoras. Não é por acaso que o agente do Vargas Llosa nos entregou o próximo romance dele [“El Sueño del Celta”] nas vésperas da atribuição do Nobel da Literatura. A Quetzal assinou o contrato, que eu validei, 15 dias antes do prémio.


E isso não se ficou a dever ao Francisco José Viegas?

O Viegas já está há dois anos na Quetzal, e o Vargas Llosa publicou entretanto livros que saíram noutras editoras. Claro que é um excelente quadro e um óptimo director editorial da Quetzal, mas a Porto Editora veio trazer ao grupo Bertrand uma credibilidade ainda maior do que a que ele já tinha. E isso potencia as coisas.


Nas polémicas sobre o livro escolar, atribui-se muitas vezes o sucesso da Porto Editora ao facto de haver muitos professores ligados à empresa. E são os professores que escolhem os livros.

Os professores são muito rigorosos na análise dos livros. Sabem que vão ter de os usar durante seis anos e só se fossem masoquistas é que não escolhiam o que acham que será melhor para dar aos alunos. E o Ministério da Educação, cuja política têm aspectos com os quais não concordo, também introduziu nos últimos anos algumas alterações que vieram tornar a selecção dos livros bastante rigorosa. Eu diria que esses comentários resultam de alguma inveja face à posição da Porto Editora no mercado do livro escolar. O número de professores ligados à editora não devia ser muito diferente na Texto ou na Asa.


Nós fazemos uma abordagem muito cuidadosa das edições, apostando na qualidade das pessoas que seleccionamos e nas equipas que montamos para desenvolver os projectos. Não queremos ter sucesso só a curto prazo, pensamos sempre no médio e longo prazo. Dou-lhe um exemplo: o francês está em queda no segundo ciclo, porque 99 por cento dos alunos escolhe hoje o inglês. Somos a única editora que continua a publicar livros de francês para o 5.º ano. Vendemos 200 e tal exemplares e perdemos uma pipa de massa, mas achamos que o devemos fazer enquanto houver meia dúzia de alunos a estudar francês. Julgo que os professores acabam por reconhecer esta postura no que a Porto Editora faz.


Acha que algumas críticas aos manuais deveriam ser endereçadas, antes de mais, aos próprios programas?

Os manuais são a exposição, na praça pública, do conteúdo dos programas, mas como ninguém conhece os programas, são os manuais que apanham.


Diz que não concorda com algumas políticas do ministério. Quer especificar?

A gestão política dos conteúdos educativos é muito preocupante, porque há uma contradição total entre o discurso e a prática. A legislação é razoavelmente liberal e, nos últimos anos, todo o discurso político tem sido de apoio à indústria de conteúdos. No entanto, a prática do Ministério da Educação tem sido o oposto disto, tem cedido à tentação de se tornar ele próprio produtor e gestor de conteúdos educativos. Faz, por exemplo, uma coisa chamada “Portal das Escolas”, onde coloca este tipo de conteúdos. Não se sabe quem os fez nem quanto se gastou, e não foram certificados por ninguém, mas, ao colocá-los na Net, o ministério está a concorrer directamente com a indústria. E se amanhã não houver indústria de conteúdos educativos, teremos um monolitismo ideológico completo.


E essa concorrência do ministério tem um impacto significativo?

Não tem, porque o Estado é muito mau a fazer as coisas, mas suspeito de que se gastaram alguns milhões a fazer aqueles conteúdos. Na indústria de conteúdos educativos, o papel do governo tem sido o de complicar a vida à indústria, contribuindo para a fragilizar. O resultado é que nos sentimos um bocado sós no multimédia educativo, porque mesmo a Leya está a anos-luz do que a Porto Editora produz nesse domínio. O governo mata toda a concorrência, e só não nos mata a nós porque já estávamos nisto muito antes de haver uma política para o sector. Mas as coisas continuarem assim, vamos acabar a consumir enlatados das indústrias multimédia de outros países, que essas não sofrem com as políticas do governo português.


A Porto Editora foi pioneira, em Portugal, no sector do multimédia. Acha que o futuro do livro está no digital?

Acho que não, acho que o papel e o digital vão ser complementares. E vai demorar uns anos. Está tudo ainda no início, quer do ponto de vista tecnológico, quer do ponto de vista legislativo. Ou me engano muito ou vamos assistir, na edição, a transformações comparáveis às que aconteceram na rádio, no cinema e na televisão: um novo meio não acaba com o anterior, mas altera-o.


Mas alguns tipos de livros, como as enciclopédias, podem vir a desaparecer rapidamente?

Essas já desapareceram. Não faz sentido editá-las em papel. Os dicionários em vários volumes também vão desaparecer ou transformar-se em objectos mais utilitários. E o mesmo sucederá aos manuais para o ensino superior, que são muito técnicos e, por isso, muito caros. Alguns livros vão desaparecer por razões de funcionalidade, outros por motivos económicos, porque são caros e, se venderem menos, custarão ainda mais. O digital é mais barato e de mais fácil acesso. Há livros, por exemplo na área infanto-juvenil, que irão migrar do papel e converter-se em produtos multimédia.


Mas tudo isto irá depender muito das gerações futuras. O meu palpite é que os miúdos que hoje têm cinco ou seis anos irão ler muito poucos livros em papel quando chegarem à idade adulta. E nós dois, se calhar, daqui a vinte anos ainda leremos livros em papel. São paradigmas diferentes. As crianças estão a habituar-se, para o bem e para o mal, a ler coisas muito breves, como as que colocam no Facebook ou no Twitter. É uma mudança civilizacional.


Em termos económicos, qual é hoje o peso do multimédia na Porto Editora?

É pouco, menos de cinco por cento.


Mas fazem investimentos consideráveis nessa área?

Investimos porque acreditamos que o multimédia vai complementar o papel, e se não investíssemos agora, perceberíamos daqui a uns anos que isso tinha sido fatal.


Tem-se falado muito em quadros digitais e noutros modos de integração do multimédia nas escolas. Se os decisores políticos andarem depressa, a Porto Editora está preparada?

Sem falsa modéstia, os decisores políticos é que têm andado atrás de nós.


Começámos com o multimédia educativo em 1995, quando no Ministério da Educação ninguém saberia sequer o que isso era. Lançámos o projecto da escola virtual em 2005, mas já em 2000 ou 2001 tínhamos decidido o que queríamos fazer, inspirados em modelos que tínhamos visto na América. O Plano Tecnológico para a Educação só foi aprovado em 2007. Em 2005 e 2006, já nós tínhamos feito experiências-piloto em duas escolas de Gaia: oferecemos quadros interactivos e projectores e, em contrapartida, deixaram-nos assistir às aulas dadas com aquele material e os professores faziam-nos um relatório semanal. Estamos mais do que preparados. Oxalá o governo não estrague o mercado.


Outra aposta da editora foi a livraria virtual Wook.pt. O número de livros que se vende através dela já é significativo?

Nos resultados da empresa, tem pouca expressão. Achamos que ainda não é o momento de divulgar números, mas temos alguns milhares de clientes satisfeitos. Investimos muito na produção de conteúdos, e menos nos aspectos comerciais. As pessoas habituaram-se a encontrar sempre lá a capa e a sinopse do livro. É muito usada para pesquisas, aparece muita gente nas livrarias com “prints” das páginas da Wook. E também desempenha um papel relevante na promoção do livro português no estrangeiro. Vendemos livros para 96 países, e as vendas para o estrangeiro representam cerca de sete por cento. Temos clientes na Mongólia, no Gabão, no Sudão.


A Betrand, enquanto grupo livreiro, não tinha muito boa reputação entre os editores. Vai manter as livrarias?

A Bertrand teve dificuldades financeiras sobretudo antes de ser vendida ao Grupo Bertelsmann, ainda que nem todos os problemas tenham sido resolvidos. Algumas das críticas já estão ultrapassadas, mas há trabalho a fazer. Já aumentámos uma livraria e admitimos pessoas. Não sei se vamos fechar alguma que funcione mal. Mas são para manter, não vamos vender.


Isso implica que a Porto Editora apostará decisivamente no mercado livreiro?

Já tínhamos experiência no retalho. Com as livrarias que abrimos no Mar Shopping e no Dolce Vita Tejo, mas também com as que temos há muitos anos na baixa do Porto, em Lisboa e em Coimbra. Não tínhamos era uma presença forte no retalho, porque não achávamos importante tê-la. Isso mudou com a aquisição da Bertrand, que tem um conjunto de 54 livrarias a funcionar razoavelmente bem. Um dado pouco conhecido, mas que é interessante, é que a Bertrand está no Guiness como a livraria mais antiga do mundo.


No sector das livrarias, vai concorrer com as Fnac?

Um pouco, mas as Fnac, infelizmente, têm vindo a crescer muito na área das tecnologias, onde concorrem com as Worten e a Rádio Popular, e perderam peso no livro.


A Bertrand também tem uma distribuidora, e a distribuição tem mostrado ser um negócio difícil em Portugal. Vai conservá-la?

Não vejo razões para não a manter. Distribui as publicações do grupo e de algumas pequenas editoras. Mas não é, de facto, um negócio nada fácil.


Todo o negócio do livro é difícil, porque o país é pequeno, temos baixíssimos níveis de leitura e pouco poder de compra.


Do ponto de vista dos leitores, um dos problemas em Portugal é não haver livrarias de fundos.

Não há fundos nem vai haver. Isso passou para o “online”. Em Inglaterra, e pode ser que nós também lá cheguemos, há muitos livros descatalogados que estão a ser reintroduzidos no mercado, mas numa base de “print on demand”. Livros que esgotaram, que não seria rentável reimprimir, mas que foram digitalizados e colocados em livrarias virtuais, como a Amazon. A editora imprime para o cliente. O custo de produção por exemplar é um bocado mais caro, mas não há stocks.


Até se tentou fazer uma grande livraria de fundos em Lisboa – a Byblos, de Américo Areal –, mas não durou muito.

O mercado do livro não é elástico. Foi uma coisa que todos aprendemos. Há uma determinada dimensão a partir da qual não cresce. Se tenho uma livraria com três mil metros quadrados, que era o tamanho da Byblos, não vendo mais do que venderia numa com 200 metros quadrados. Pelo menos naquele sítio, atrás das Amoreiras, onde passa o camião do lixo. Foi um erro crasso. Toda a gente lhe disse isso.


Um fenómeno relativamente recente é o facto de muitos livros começarem a já não aparecer nas Fnac e Betrand do Porto. Vê-se isso, por exemplo, na poesia.

É um facto que o Porto é marginal. É uma questão de escala, de dimensão, de poder de compra. É um fatalismo. Enquanto há alternativas no on line, ainda vá que não vá. Se me perguntar se daqui a dez anos ainda se edita poesia em Portugal, eu dir-lhe-ei que não. Quando muito teremos algumas edições artesanais. Mas continuaremos a ter poesia via e-books ou através do “print on demand”.


Mas também têm nascido muitas pequenas livrarias especializadas.

E haverá mercado para isso. Para o tipo que faz uma edição de 30 ou 50 exemplares, que os amantes de poesia comprarão.


A Leya já está no Brasil e o grupo Babel, de Paulo Teixeira Pinto, anunciou que irá lá construir uma editora de raiz. A Porto Editora não vai seguir este caminho?

Por várias razões, mas essencialmente porque achamos que é uma realidade bastante diferente da nossa. Porventura faria mais sentido investir em Espanha. Aquilo que a língua nos facilita no Brasil já não é tanto quanto isso. Os livros têm de ser muito adaptados e, no multimédia, as locuções têm de ser todas refeitas, porque a forma de construção das frases é muito diferente. E, na edição, o Brasil é hoje uma realidade totalmente diferente da nossa, com grupos fortes e instalados. Claro que também lá há muitas opotunidades, mas entendemos que devíamos diversificar mais em Portugal e estabilizar estes novos crescimentos. Desde 2009 que temos estado empenhados no negócio da Bertrand, e há uma década que vimos crescendo consistentemente em África, em Angola e Moçambique.


Através das chancelas Plural?

Sim. Temos vindo a produzir livros para os sistemas de ensino desses países, e também para Cabo Verde, S. Tomé e Timor Leste. Em 2007, um sexto das importações portuguesas para Moçambique eram livros.


Estamos em muitas frentes. O Brasil é um campeonato diferente, que obrigaria a construir uma editora de raiz, como o Teixeira Pinto está a fazer.


Não acredita, portanto, na retórica de que o acordo ortográfico facilitará o intercâmbio editorial entre Portugal e o Brasil?

Não acredito nada. Aliás, já há provas disso. O Brasil aplicou o acordo há dois anos e, portanto, os livros brasileiros já deviam estar todos a circular por aí. Não vejo nada, não veio nem mais um livro do Brasil por causa disso.


O brasileiro é uma língua que ainda não se assumiu como autónoma, mas que tende para se autonomizar do português. O acordo é um pequeno remendo para aproximar ligeiramente a grafia europeia, que é a mesma de África, e a sul-americana. Só isso, mais nada. E tem vários erros técnicos.


Os editores foram sempre contra o acordo até ele ser aprovado, mas por razões mais técnicas do que comerciais ou ideológicas. Quando nos dizem que os editores deviam estar satisfeitos com o acordo, devem estar a brincar com a nossa cara.


O acordo não nos aquece nem nos arrefece, mas cria problemas adicionais em África. E a isso se deve, creio eu, este compasso de espera na sua aplicação, depois de o engenheiro Sócrates ter dito há um ano e tal no Brasil que o Diário da República sairia em Janeiro já com a nova grafia. O governo sabe que o acordo é mera cosmética e que não resolve nada na relação com o Brasil, mas se o aplicarmos de forma teimosa e cega, corremos o risco de nos afastarmos do português que se escreve em África, que é igual ao nosso, porque Angola e Moçambique ainda não ratificaram o acordo. É um erro estratégico enorme e julgo que o Governo já o percebeu, mas não quer fazer “mea culpa”.


Mas acha que combater hoje o acordo é entrar numa guerra perdida?

Neste momento já não faz sentido estar contra o acordo. O que resta é o que se está a fazer: esforços diplomáticos para levar Angola e Moçambique a ratificá-lo.


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