Um teatro asfixiado

O que está em causa no Teatro Nacional de Ópera não é só o raquítico simulacro de temporada, há mais: a um mês do fim do mandato de Martin André nada se sabe, e é bem possível que em Maio já nem director haja.

O Teatro de São Carlos abriu portas em 1793. Ao contrário dos anteriores teatros de corte, como a Ópera do Tejo, logo destruída pelo terramoto de 1755, ou o de Salvaterra, tratava-se de um teatro público, iniciativa de um grupo de comerciantes, com o beneplácito do príncipe regente, o futuro D. João VI, e sobretudo do intendente da polícia, o célebre Pina Manique, que se manteria atento censor sobre os usos e costumes no teatro. Essa era uma equação instável, destinada a determinar duradoiramente os destinos do São Carlos.

Logo em 1820, com a Revolução Liberal, a burguesia confrontou-se com as dificuldades financeiras do “seu” teatro de ópera. Comissões administrativas e concessões alternaram com administrações directas por parte do Estado e períodos de encerramento. Pontualmente reaberto em 1940, quando do momento de exaltação ideológica da ditadura que foi o chamado “duplo centenário” da Independência e da Restauração, o São Carlos passou a ter actividade continuada desde 1946, sob a tutela directa do governo – actividade continuada mas atribulada.

Sinal da instabilidade são as vertiginosas alterações de estatuto desde 1979. Nesse ano o Teatro foi dotado de personalidade jurídica e de autonomia administrativa e financeira, para logo no ano seguinte passar a empresa pública, todavia extinta em 1992, constituindo-se então a Fundação do São Carlos: cinco anos depois também aquela foi extinta e foi instituído o estatuto de pessoa colectiva com autonomia administrativa e financeira; por fim, em 2007, no Governo de Sócrates, sendo ministro da Cultura Isabel Pires de Lima e sobretudo secretário de Estado Mário Vieira de Carvalho, foi instituída a Opart, Organismo de Produção Artística, Entidade Pública Empresarial, incluindo o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado.

Exactamente com esta última alteração de estatuto – ainda em vigor – coincidiu o afastamento da direcção do teatro de Paolo Pinamonti, que desde 2011 fora responsável por um dos mais brilhantes períodos de actividade do São Carlos desde a reabertura. Sempre por iniciativa de Vieira de Carvalho surgiu então em cena, e por um período previsto de cinco anos, um novo director artístico, o catastrófico Christoph Dammann. Pior era difícil de imaginar, mas, como agora se verifica, o teatro nacional de ópera ainda viria a descer mais baixo.

Em 2010, já no segundo Governo Sócrates, e perante a óbvia catástrofe, a ministra Gabriela Canavilhas demitiu Dammann e nomeou o maestro Martin André, que entrou em funções em Maio de 2010.

No seu programa para as eleições de 2011, o PSD previa a extinção da Opart e o intuito de “retomar níveis de excelência” no São Carlos e na CNB, mas tais propósitos eram desde logo afectados pela subalternização da Cultura na orgânica do governo. Quase como factor anedótico ocorre também que o novo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, é um barítono que até tinha tentado a carreira de cantor, e que aprecia ópera – esteve mesmo presente na abertura da temporada 2011-12, com o Don Carlo de Verdi, em contraste com a ausência do seu secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas. Mas a este amador do canto iria afinal calhar o papel de barítono-vilão, seguindo a tipologia estabelecida com Donizetti e Verdi.

Logo pouco depois, em Janeiro de 2012, foi anunciado um corte nos apoios estatais de 72% (!!!), obrigando ao cancelamento de vários espectáculos já anunciados, corte que se manteve para o presente ano. Mas mais, e facto insustentável para qualquer teatro de ópera, que para desempenhar cabalmente as suas funções artísticas precisa de planeamento a prazo: o orçamento foi apenas comunicado ao teatro em finais de Novembro do ano passado.

É essa a razão para o simulacro de temporada que hoje se inicia, ou uma “não temporada”, apenas com as óperas da chamada “trilogia popular” de Verdi, compositor de que se comemoram os 200 anos do nascimento, com o Rigoletto, Il Trovatore e La Traviata. Quanto a Wagner, de quem também se comemora o bicentenário do nascimento, nada. O grande projecto da era Pinamonti, a tetralogia O Anel do Nibelungo, encenada por Graham Vick, em que as diversas óperas foram sendo apresentadas ao longo dos anos com vista a uma inédita apresentação de todo o ciclo, e que tanta atenção internacional suscitou, malogrou-se assim.

Mas o que está em causa nesta asfixia do teatro de ópera não é só o raquítico simulacro de temporada, há mais: a um mês do fim do mandato de Martin André nada se sabe, e, como o tenho por uma pessoa de honra, é bem possível que em Maio já nem director haja.

Duas ilações se impõem: não só o Governo não tem estratégia para o São Carlos, como não tem também sequer a hombridade devida à direcção e aos corpos artísticos do teatro. Pior que isto é mesmo difícil de imaginar, pois que, salvaguardando a actividade da Orquestra Sinfónica Portugal e do Coro do São Carlos, que o teatro nacional de ópera abra portas para esta miséria ou que esteja encerrado já pouca diferença faz.
 
 
 
 
 

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