Um realizador e um escritor à conversa sobre a morte

Miguel Gonçalves Mendes explica por que razão escolheu o escritor Valter Hugo Mãe para o seu próximo documentário, um projecto ambicioso que anda à procura do sentido da vida. Uma entrevista por email com o realizador de José e Pilar, que está a trabalhar em São Paulo

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Valter Hugo Mãe com os realizadores Fernando Meirelles (esq.) e Miguel Gonçalves Mendes DR

Foi pouco depois de Valter Hugo Mãe ter sido dado como vencedor do Prémio Portugal Telecom 2012, um dos mais importantes da literatura escrita em português, que Miguel Gonçalves Mendes anunciou que o autor de A Máquina de Fazer Espanhóis entraria no seu novo documentário. Estava escolhido há já muito tempo, assim como o filósofo suíço Alain de Botton.

 

Neste projecto do realizador de José e Pilar, retrato intimista do Nobel português José Saramago que se tornou bastante popular, Valter Hugo Mãe será uma das sete “personagens reais” com que o protagonista se cruza na sua viagem pelo mundo. Miguel, esta figura central que vai coser todas as narrativas independentes que têm no centro um arquétipo – um político, um filósofo ou um astronauta -, anda a dar uma volta ao mundo (passa por cinco cidades em três continentes diferentes) à procura do sentido da vida, numa altura em que pode estar prestes a perder a sua.

Miguel Gonçalves Mendes reservou três anos para este projecto que tem apoio do Estado brasileiro, mas não encontrou subsídios em Portugal, à semelhança do que acontecera já com José e Pilar. O PÚBLICO falou com o realizador por email – Mendes está a trabalhar no Brasil, com a O2, a produtora do cineasta Fernando Meirelles, que volta a associar-se a um dos seus filmes. Depois de o documentário sobre Saramago, o realizador jurou que não voltaria a fazer outro. Voltou atrás para este O Sentido do Fim: “Quando chegar a minha hora quero sentir que vivi tudo de forma plena e que convivi com as pessoas que mais amo e admiro. Acho que isso talvez diminua a dor da morte... Espero.”

Por que razão escolheu Valter Hugo Mãe, o que é que o atrai na sua escrita?

Como é claro, a escolha já tinha sido feita [antes do Prémio PT]... Os meus projectos não dependem desse tipo de questões e seria impressionante a rapidez se não fosse esse o caso.

Este projecto e a sua plataforma de financiamento colectivo foram apresentados em Julho passado na Fnac. Nessa altura já tinha estabelecido contacto com o Valter Hugo Mãe e, para meu grande orgulho, ele aceitou. O que se passou foi que o Valter veio conhecer o Fernando Meirelles à O2 [produtora do cineasta brasileiro de Cidade de Deus] e este achou por bem divulgar publicamente a participação [da sua empresa] neste projecto. E para ser honesto, essa sim, é a grande notícia a registar - como um projecto que vem na sequência de José e Pilar , que também havia sido recusado três vezes junto do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), se vê também sem apoio no último concurso com verba do instituto do ICA e acaba por ser apoiado pela maior e mais prestigiada produtora do Brasil.

 

Essa falta de apoio não impediu, no entanto, o documentário sobre Saramago de ter bastante sucesso…

José e Pilar foi (e é) um dos filmes portugueses com melhor carreira nacional e internacional em termos de documentário. E foi o filme indicado por Portugal aos Óscares no ano passado (feito inédito para um documentário). Na realidade, nada disto faz muito sentido, mas acho que já estamos todos habituados a que as coisas em Portugal não façam sentido. Saliento, a título de exemplo: aquando da escolha dos filmes para o plano nacional de cinema, foi enviada à Secretaria de Estado da Cultura uma carta da associação de professores de Português e da Fundação Saramago (que tinha como signatários Vasco Graça Moura e Eduardo Lourenço, entre outros) que sugeria que o filme (José e Pilar) constasse deste plano, tendo em conta Saramago ser de leitura obrigatória. Pois bem, o filme não faz parte da lista. Mas, por sua vez, recebeu do Ministério da Cultura brasileiro um prémio de qualidade (atribuído apenas a sete de todos os filmes com participação nacional estreados no Brasil em 2011) no valor de 100 mil reais [36 mil euros] para o desenvolvimento do próximo filme. São apenas constatações de que nada faz sentido.


A não ser a escolha de Valter Hugo Mãe…

A escolha prende-se com o facto de ser um dos meus autores actuais preferidos e de, na prática, corresponder a um dos arquétipos de que necessito no filme. Sei que as comparações são redutoras, mas na realidade, a seguir a Saramago, foi o único autor que conseguiu fazer algo que admiro muito: escrever histórias universais, mas cuja essência é o retrato de uma certa portugalidade. E seja no cinema ou na literatura, gosto de reconhecer a sociedade da qual provenho. 

Por outro lado penso que, para além dos temas sociais, existe nele uma procura de um certo apaziguamento da dor, resultante da nossa eterna incompetência em estar “aqui”. Mas não deixa de ser uma procura solar (ou optimista, para não ser tão foleiro) e isso agrada-me. Por outro lado, o filme acompanha o processo de escrita do próximo romance do Valter, que se desenrola na Islândia e, por sua vez, esse facto faz a ponte com um outro personagem/ arquétipo proveniente desse país.

Sei que vai passar uns dias na casa de Valter Hugo Mãe antes de a sua equipa ir para lá filmar. Como vai ser exactamente?

Bom, não vou instalar-me na casa dele... É sobretudo perceber rotinas, padrões de comportamento, pequenos gestos. E sobretudo falar, falar muito sobre a morte, a vida e todos esses temas universais e foleiros que de algum modo nos movem no processo de criação.

Sente-se confortável na casa de escritores? Saramago, Cesariny... O que têm de especial?

Na realidade, não têm nada de especial... O que se passa é que, nos dois filmes anteriores, tratava-se de escritores que admirava muitíssimo e, pura e simplesmente, queria conhecê-los. Tão simples e primário como isso. Neste caso é exactamente a mesma coisa. Na realidade, espero que ter conhecido estas pessoas tenha tornado a minha vida mais plena, com mais sentido, ou tenha feito com que esteja mais em paz comigo. Acredito que sim, aliás. E nada disto tem a ver com o meu trabalho, ou talvez tenha. Simplesmente, quando chegar a minha hora quero sentir que vivi tudo de forma plena e que convivi com as pessoas que mais amo e admiro. Acho que isso talvez diminua a dor da morte... Espero. :)Description: :)

Há outros arquétipos envolvidos no documentário - sete, no total. Já escolheu todas essas pessoas? Quem são?

Todos os arquétipos [pessoas] estão escolhidos desde o início, o que não significa que aceitem... O que também não é terrivelmente dramático porque a sua função no filme é muito específica e, afortunadamente, o mundo está repleto de gente que admiro. Todas as conversações já foram iniciadas, mas os nomes não são publicáveis porque não temos ainda todas as confirmações.

Mas, a título de exemplo, posso referir o [escritor e filósofo] Alain de Botton. É um dos que já aceitou e a sua escolha prende-se com uma razão muito concreta: quando estava a estruturar o projecto sentia falta de uma perspectiva religiosa, mas achava demasiado redutor cingir-me a uma religião concreta. Então, achei que o Alain de Botton era a pessoa certa. Por defender uma religiosidade ateia, por considerar que com a perda da fé nas diferentes religiões fomos perdendo também o nosso sentido comunitário. É por isso que ele defende a construção de templos para ateus. Não só acho uma ideia bastante poética como não nos podemos esquecer de que o protagonista tem um confronto permanente com a morte.

"Qual é o sentido da vida?": Esta é uma pergunta de resposta impossível ou de milhões de respostas possíveis (tantas quantas as pessoas)?

Claro que, em princípio, será uma resposta impossível (e, por essa mesma razão, não nos podemos esquecer de que o título do filme foi roubado aos Monty Python), mas como dizia o Nuno Artur Silva quando falou sobre o processo, talvez sejam mais interessantes as perguntas no decurso da procura do que propriamente a resposta. Na realidade, eu sei qual é a resposta que pretendo passar. E essa equação foi algo que me atormentou durante muito tempo por pensar: "Se vou fazer este filme, tenho de encontrar a resposta!" E por acaso encontrei, ao ver um filme do Gus Van Sant.

"Miguel" viajará mesmo de carro pelo mundo ou é só na ficção que cose as sete histórias reais?


O protagonista viajará mesmo de carro numa volta ao mundo. Por duas razões: primeiro, porque tal como o realizador, tem pânico de voar; e a segunda, porque considero que vivemos num mundo em que perdemos a consciência da terra e das distâncias. Não quero parecer nada new age, porque não sou, mas viajamos de aeroporto em aeroporto, de cidade em cidade, como se fossemos hologramas que vão de um ponto A a um ponto B. Ora, desta forma todas as nuances se perdem: as transições, as transformações na paisagem e em nós, a apropriação orgânica das diferentes culturas e a geografia dos espaços. A questão é simples: de avião (e apesar da altura) não se vê "the big picture". Do espaço sim. E daí o arquétipo do astronauta. 

Falou num projecto a três anos. Quando começa a rodagem? E para quando a estreia?

É um projecto a três anos, mas não porque goste de sofrer e carregar estes fardos durante tanto tempo. Dura três anos porque implica uma volta ao mundo que demora seis meses, bem como acompanhar cada um dos personagens por outros três e, a tudo isto, temos de adicionar mais um ano de montagem. Não são projectos fáceis, mas é a única forma que considero legítima quando se pretende verdadeiramente retratar alguém. É necessário tempo. Tempo para que se estabeleça confiança e a verdade se instale.

Sente responsabilidade acrescidas neste que é o seu primeiro documentário depois de José e Pilar, que teve grande impacto?

O impacto é relativo. Depende de que impacto falamos. Profissionalmente falando, em Portugal não me trouxe qualquer tipo de dividendo, a não ser uma dívida de 100 mil euros. Mas, na realidade, não sinto qualquer tipo de responsabilidade acrescida. Se sentisse estaria bloqueado e não avançaria, o que seria um problema.

No caso do filme do Saramago, acho que senti essa responsabilidade. Por várias razões: de produção, pelo peso da pessoa retratada, pela sua relação com o país, pelo peso das co-produções, entre outros. Foi um processo muito difícil que, no sentido metafórico claro está, quase me matou. Jurei a mim mesmo que não voltaria a fazer um documentário, mas para provar que não sabemos nada da vida, aqui estou eu a querer fazer outro maior e ainda mais ambicioso.

Tenho a convicção absoluta de que não devemos pensar de mais, mas sim agir. É mais à frente, ao olhar para trás, que perceberemos se o que fizemos foi o correcto ou não. Acho que quando somos hipercríticos bloqueamos. E acho que Portugal esta cheio de brilhantes falhados. Isto é, pessoas hipercríticas em relação ao outro, que pura e simplesmente não agem para não se confrontarem com o seu hipotético falhanço. Eu prefiro ser criticado e agir do que não fazer nada. Se não fizesse nada seria porque tinha desistido de viver. Para mim faz todo o sentido e é quase imperioso que, numa época em que estamos absolutamente perdidos e em que sentimos que o sistema em que vivemos está a colapsar, tudo façamos para perceber o que nos move. Recuso-me a ficar amargo.


Por outro lado algo que este processo de descoberta me pode ajudar muito no relacionamento com os meus personagens. É que apesar da minha enorme admiração por eles, não tenho por hábito mitificar ninguém e considero que a única forma honesta e justa de estar neste mundo é relacionarmo-nos de igual para igual. E irrita-me sobremaneira quando a pessoas confundem simpatia com estupidez.

 

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