Um piano à deriva em Belém

Tigran Hamasyan, prodígio do piano nascido há 26 anos na Arménia, toca esta quarta-feira à noite, às 21h, no Centro Cultural de Belém. Aquele que o histórico Herbie Hancock elegeu há tempos como o seu novo mestre mostra a solo como não há caminhos impossíveis para a sua expressão.

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Em Julho do ano passado, quando foi anunciado ao microfone do Festival Músicas do Mundo (FMM), em Sines, que o dueto previsto de Trilok Gurtu e Tigran Hamasyan não poderia acontecer devido a sucessivos atrasos com os voos do percussionista indiano, temeu-se o descalabro. Hamasyan era apenas um nome estranho vindo da Arménia, um propalado prodígio no piano, mas a quem não se conheciam méritos que se adivinhasse poderem ocupar o palco principal a solo e conquistar um público festivaleiro.

 “O desafio foi mesmo não estar a tocar numa sala lindíssima, com uma acústica óptima e um público em silêncio”, recorda hoje ao PÚBLICO. “O desafio foi tocar para um público de pé, à espera de ser animado, algo que faço regularmente mas em trio ou com banda.” O que não se imaginava, portanto, era que Hamasyan começasse por uma demonstração virtuosística de um reportório de fundo clássico e barroco, e logo expandisse todo este universo musical com assobios fantasmagóricos, loops de piano eléctrico, resquícios de música vocal tradicional da Arménia e uma convincente simulação dos sons das tablas de Gurtu em modo human beatbox (com recurso apenas aos sons produzidos pela boca, entenda-se). No final, como escrevemos na altura, tínhamos assistido a um dos mais belos e inesperados concertos do FMM.

Em palco, é fácil de perceber que a voz de Hamasyan corre muitas vezes atrás das notas que lhe saem das mãos, algo que se foi observando ao longo dos anos em pianistas exímios como Glenn Gould ou Keith Jarrett. No caso do músico arménio, e sabendo-se da sua paixão pela música tradicional indiana (que estabelece a ponte para o duo com Gurtu), poderia tratar-se de uma derivação da prática bol, os vocábulos com que os tocadores de tablas acompanham os seus ritmos. Mas, na verdade, desmistifica Tigran, é apenas “um péssimo hábito”. “Só que não consigo evitar fazer barulho quando canto”, justifica-se. “Por vezes, tento estar mais consciente para o evitar. Mas também é verdade que, noutras ocasiões, canto propositadamente, porque o piano não é capaz de obter os mesmos sons que a voz e esta é chamada a ajudar na emoção que se quer extrair da nota.”

Nascido pouco antes de a Arménia se tornar o primeiro país a reclamar a independência da União Soviética, em 1991, Tigran Hamasyan beneficiou de crescer com um piano em casa e, aos três anos, já começava a explorar o instrumento. Curiosamente, a instabilidade no período pós-independência acabaria por funcionar como incentivo para a ascensão meteórica da sua técnica pianística – a miséria económica do país e o conflito armado entre arménios e azerbaijanos levaria a constantes apagões. “Coincidiu com a altura em que comecei”, explica, “e por isso não havia mais nada para fazer senão tocar piano.”

A sua formação, de acordo com a forte tradição musical soviética, conduziu-o então a uma sólida base clássica. Mas a rápida apreensão de toda a música com que contactava não demorou a empurrá-lo para o contacto com o jazz, de fascínio imediato e pela mão de um tio que lhe deu a ouvir Miles Davis e, sobretudo, os anos 1970 de Herbie Hancock, pejados do funk com que o músico norte-americano queria imitar Sly Stone. Daí que Hamasyan tente relativizar e classificar como “um exagero” o facto de, em 2008, com apenas 20 anos, ter ouvido Hancock declarar no Festival Jazz Orléans que aquele jovem músico arménio nascido em Gyumri (quando Hancock há muito inscrevera o seu nome na história do jazz) tinha passado a ser o seu mestre.

Uma guitarra para Tigran

Não é difícil supor com reduzido risco o que passava pela cabeça de Herbie Hancock para lhe saírem tais palavras. Para alguém cuja marca no jazz está muito firmada na fusão, a imprevisibilidade e a forma estonteante como Tigran deita as garras de fora e se apropria das mais variadas correntes musicais e as integra com coerência no seu discurso terá sempre de produzir admiração. Até porque, cada vez mais, a música do pianista deixa escapar as suas origens, fugindo de uma linguagem inscrita de forma inequívoca no jazz. “Percebi que a música tradicional arménia está dentro de mim, porque da primeira vez que a ouvi com clareza pensei: ‘Isto é muito bonito, nem sabia que transportava esta música comigo.’ E então comecei a ouvi-la todos os dias, tal como oiço jazz, rock ou música electrónica.” Mas não é um exclusivo nacionalista. Quaisquer tradições – fala, nomeadamente, da escandinava e da indiana – o seduzem pela razão simples de que “é aí que tudo começa, é a música mais natural”. Shadow Theater, o seu álbum de 2013, gravado com banda, viaja livremente por todas essas referências, recusando-se a aportar numa única. O motor parece ser, a cada segundo, a deriva.

A perplexidade instala-se, no entanto, quando Tigran Hamasyan, que é desde a edição do seu álbum de piano solo A Fable (2010) apontado como um dos maiores talentos emergentes no jazz mundial, revela que o seu maior sonho era, afinal, ser guitarrista de uma banda de thrash metal. “Há muito tempo que gostava de ser guitarrista e ainda hoje o sinto. É um sonho que nunca consegui concretizar. Toco piano desde os três anos e nunca consegui mudar para a guitarra. Desde os 17, aliás, que componho regularmente música pesada, heavy metal arménio, e quem me dera poder ser eu a tocá-la. Mas acho que tenho de arranjar um guitarrista, porque vou acabar por tocar piano nessas músicas.”

Na verdade, a figura desconcertante de Tigran Hamasyan parece simplesmente perseguir o impossível e não se contentar com tudo aquilo que conquista com uma facilidade espantosa. Neste momento, o músico que há um par de anos poderia ser confundido com um sósia de Bob Dylan da época de Blonde on Blonde, faz uma pausa na sua vida de Los Angeles (para onde foi aos 18 anos) e regressa provisoriamente à Arménia, entre concertos e gravações, em busca de um sossego que lhe permita praticar e compor em paz absoluta. É para lá que voltará pouco depois do concerto a solo desta noite no Centro Cultural de Belém, a fim de preparar um álbum de música religiosa arménia e uma outra gravação que quer manter em segredo. Algo que, tendo em conta, a sua natureza, pode querer dizer tudo.

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