Teatro nos intervalos do cinema (e vice-versa): André Godinho e o Cão Solteiro apresentam Day for Night

Espectáculo inspirado em A Noite Americana, de François Truffaut, está de hoje até quarta-feira na Culturgest, em Lisboa; a curta-metragem que dele resultar terá estreia no Festival Temps d’Images.

Fotogaleria
Day for Night na Culturgest, de André Godinho e a Cão Solteiro
Fotogaleria
João Couto
Fotogaleria
André Godinho

O palco é um estúdio, a plateia são os bastidores, alguns dos técnicos passam a ser actores, alguns actores transformam-se em técnicos. Day for Night, que hoje se estreia na Culturgest, em Lisboa, às 21h30 (até quarta-feira, dia 19), é o nome de uma peça de teatro que na realidade consiste na rodagem de Fim da Fita, uma curta-metragem de André Godinho, que aqui repete a experiência de co-criação com a companhia de teatro Cão Solteiro – e de trânsito entre os códigos do teatro e os códigos do cinema – testada em We All Go a Little Mad Sometimes, de 2010, e Play, The Film, de 2011.

O guião do espectáculo (mas não do filme) é inequívoco: vai filmar-se uma curta-metragem. Há um argumento, três actores, três décors: dois quartos (um azul, outro verde) e um corredor amarelo, com portas e uma janela ao fundo. Fora do palco, na plateia, estão a mesa de maquilhagem, o guarda-roupa e o catering das filmagens. Quando os espectadores chegam, já a rodagem da curta-metragem começou; a primeira cena está concluída. A partir daí, há alturas em que a peça se confunde com a realidade, porque de facto está a ser rodado um filme (razão pela qual, de resto, Day for Night será diferente hoje, amanhã e depois: em cada dia serão filmadas cenas diferentes). E há outras alturas em que a peça é a ficção do que se passa nos bastidores quando há uma pausa na rodagem para mudar a câmara de posição ou para alguém beber água – alturas em que o teatro intervém, preenchendo os intervalos do cinema. Apenas uma regra inviolável: é proibido haver interacção entre os espectadores e os actores/técnicos.

Day for Night retoma, em muitos sentidos, as anteriores experiências de cruzamento entre as duas linguagens feitas por André Godinho e o Cão Solteiro – experiências como We All Go a Little Mad Sometimes, em que várias cenas de filmes de Hitchcock eram encenadas em cima de um palco, e como Play, The Film, o espectáculo anterior da dupla, em que o público (sentado no palco, onde havia uma grande mesa de trabalho) assistia à dobragem de um filme e, consequentemente, às conversas entre os actores e os técnicos que decorriam nos intervalos dessa operação. Desta vez, a ideia é justamente “trabalhar e explorar a pausa”, conta o realizador ao PÚBLICO. Paula Sá Nogueira, que além de actriz é membro da direcção do Cão Solteiro, explica que a companhia trabalha regularmente com criadores vindos de outras áreas artísticas – e que com André Godinho persegue a possibilidade de “sintetizar as duas linguagens, teatro e cinema, numa só”.

Quando questionados sobre os riscos de uma produção deste tipo, a actriz responde prontamente, e entre risos: “Podem nunca mais nos dar dinheiro.” Paula Sá Nogueira e André Godinho não escondem que é sempre um risco sair de tudo aquilo que não é conhecido e seguro, e que tudo o que não é vagamente clássico tem sempre a possibilidade de ser considerado inútil, o que consideram triste. Recordam, no entanto, que em Play, The Film isso não aconteceu e tiveram uma adesão de público à partida “impensável”.

Day for Night parte, desde logo pelo título, do filme homónimo de François Truffaut, que em português recebeu o título A Noite Americana (1973), referência assumida à “ilusão” cinematográfica que permite filmar durante o dia cenas que supostamente decorrem à noite. É desse efeito de “suspension of disbelief” (suspensão da descrença), e da sua possível tradução teatral, que André Godinho e a Cão Solteiro querem falar agora: “O filme tem esse efeito de realidade. Teatro é o oposto, sabe-se sempre que é mentira. Há aqui um confronto. Quero o efeito de realidade dentro dos décors, mas por outro lado há os falsos técnicos”, refere Godinho. Coincidem neste espectáculo, momentos 100% reais – os actores estão sempre a fazer o filme – e momentos 100% ficcionais, como o musical que acontece na plateia e que não aparece no filme. É a cena em que a rapariga da maquilhagem com ar doce se dirige a um técnico que está no palco enquanto canta Somewhere, do musical West Side Story. O técnico começa a cantar também e os dois terminam abraçados em clima apaixonado.

Mas esse é o filme – ou melhor, o teatro – fora do filme. A curta-metragem que este espectáculo no fundo serve para filmar, Fim da Fita, retrata a história de uma equipa de cinema que está a rodar um filme e se encontra alojada num hotel. Entre o elenco, há uma actriz, Paula (Paula Sá Nogueira), que vive num dilema e não tem vontade de estar a fazer cinema, acabando por se refugiar num quarto. E há também um rapaz e uma rapariga que têm uma história romântica. Mas o mais interessante é que André Godinho escreveu o filme recorrendo à vida pessoal de Paula Sá Nogueira, uma vez que a actriz passa por esse dilema na realidade. Além de um colectivo de trabalho, o realizador e a Cão Solteiro convivem fora das quatro paredes do teatro, o que lhes permite tocar em algo mais íntimo. E porque não o cinema (ou seja, porquê o teatro)? Porque “se é para ser bera é agora e aqui, e se é para ser maravilhosa é agora e aqui". "Depois da vida, deixamos de existir”, responde a actriz.

Day for Night fica no Grande Auditório da Culturgest até depois de amanhã, dia 19; Fim da Fita deverá estrear-se no Festival Temps d’Images, em data a confirmar. O ideal, acreditam André Godinho e o Cão Solteiro, é assistir a ambos: mesmo quem “vir o filme” agora, enquanto ele está a ser feito, verá outra coisa completamente diferente quando ele estiver terminado.

Notícia corrigida às 15h44 de 17 de Fevereiro: ao contrário do que estava escrito, a peça Play The Film não foi co-produzida pela Culturgest. Essa informação foi eliminada.

Sugerir correcção
Comentar