Sim, vimos tudo com Alain Resnais

Há 36 anos, com Providence, Resnais fez o seu filme sobre o envelhecimento e a morte, em jeito de “comédia negra”. O exorcismo teve o seu efeito: não morreu decrépito, não morreu incapaz, pelo contrário morreu no auge, e em plena festa.

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Alain Resnais no Festival de Cinema de Cannes em 2012 REUTERS/Yves Herman/Files

Alain Resnais morreu com 91 anos (faria 92 em Junho), ainda plenamente activos e criativos. O seu último filme, de título profundamente “vitalista” (Amar, Beber e Cantar), teve a sua estreia mundial há menos de um mês, no Festival de Berlim. E Resnais estava, certamente, num dos picos da sua vitalidade criativa, fazendo suceder, ao longo das últimas duas décadas, uma série de filmes que pareciam cada vez mais jovens, mais livres, mais irreverentes, mais solitários no caminho que percorriam mas sempre, sempre, terrivelmente vivos enquanto expressão de um enorme gozo no acto de fazer (e dar a ver) cinema brincando com as suas convenções.

 A obra de Resnais impressiona também por esta longevidade, mas nisso ele não estava sozinho. Vem de uma geração de cineastas que, como os pintores, viveu muito tempo: Rohmer ou Marker, mas também entre os ainda vivos Rivette, Agnès Varda ou Godard, todos actualmente com mais de 80 anos e os dois últimos ainda em plena actividade. A obra de Resnais impressiona também por isto, dizíamos: os seus filmes testemunharam mais de meio-século, entre os anos 40 do século XX e a segunda década do século XXI. E num cineasta que tanto tratou da questão da “memória”, nada parece mais natural do que ver-se na sua obra, igualmente, uma inscrição da memória, da memória pessoal e da memória colectiva de um tempo.

Um dos seus filmes fundamentais, pedra angular de toda uma tradição da modernidade cinematográfica, foi há bem pouco tempo reavivado pela distribuição portuguesa. Falamos de Hiroxima, Meu Amor, que recentemente voltou às salas em Portugal, e que em 1959, juntamente com os 400 Golpes de François Truffaut, serviu para certificar o nascimento da nouvelle vague - e isto apesar de a história de Resnais com a nouvelle vague ser mais uma história paralela do que propriamente o registo de uma presença, ou de um sentimento de pertença ao eixo central desse movimento.

Como no caso de Chris Marker, teria sempre havido Alain Resnais mesmo que nunca tivesse havido nouvelle vague. O seu percurso iniciara-se antes, e segundo coordenadas razoavelmente diferentes do percurso seguido pelos “cahieristas”, Godard, Truffaut e todos os outros. E se Hiroxima, por todas as razões, foi o primeiro grande momento da afirmação de Resnais, convém chamar a atenção para a notável série de curtas ou médias metragens que precederam esse título. Feitas entre a segunda metade do anos 40 e os anos 50, lançaaram muitas das bases temáticas e mesmo formais do que seria a obra futura do cineasta. Nelas se encontra, já, uma consistente aproximação do cinema a outras artes (os filmes sobre pintores e pintura, Van Gogh, Gauguin, a Guernica...) em cruzamento com questões propriamente relacionadas com a História e com a memória – é o caso de Les Statues Meurent Aussi, que “revê” o colonialismo à luz da arte africana; é o caso de Toute la Mémoire du Monde, sobre uma biblioteca como acumulação de saber e do saber, como, justamente, “toda a memória do mundo”; e é muito especialmente o caso de Noite em Nevoeiro, feito em 1955, ainda hoje um título absolutamente capital na história do tratamento cinematográfico do Holocausto, e de Auschwitz em particular.

Resnais foi sempre um experimentador e, como vimos, alguém interessado em relacionar o cinema com outras disciplinas, artísticas ou de pensamento científico (o caso evidente de O Meu Tio da América, concebido em referência ao trabalho teórico do psicólogo Henri Laborit). Uma das expressões mais evidentes desse interesse foi a sua associação com escritores: Marguerite Duras, logo nessa primeira longa que foi Hiroxima, e logo a seguir Alain Robbe-Grillet, com quem concebeu outro dos seus títulos lendários, O Último Ano em Marienbad. Não se tratava meramente de “adaptar” obras literárias, e de resto Resnais disse várias vezes que nunca adaptaria um romance ao cinema (promessa que veio, muito recentemente, a não cumprir, mas o princípio geral manteve-se durante décadas) mas de trazer para o próprio tecido do filme, e para a sua “lógica de fabrico”, um contributo diferente, não tradicional nem baseado numa tradição de cinema, com incidências ao nível formal, e muito especialmente no que toca à forma de narrar - Hiroxima, Marienbad, o belíssimo Muriel ou o Tempo de um Regresso (há pouco tempo editado em DVD em Portugal), são filmes que, de facto, inauguram qualquer coisa, e trabalham uma forma de narrar, de estruturar a narração, com poucos ou nenhuns precedentes cinematográficos. Convém dizer, até, que foi depois das experiências com Resnais que quer Marguerite Duras quer Alain Robbe-Grillet se descobriram também como cineastas em nome próprio, tendo construido, qualquer um deles, obras fílmicas altamente significativas, em natureza e em extensão.

O trabalho sobre a narração, bem exemplificado por estas colaborações com escritores (outro foi Jorge Semprun, mais tardiamente, e talvez com resultados não tão marcantes), é um dos eixos centrais do cinema de Resnais. E um eixo que se exprime ainda através do seu interesse em trabalhar sobre formas narrativas eminentemente populares, sobre lógicas de “género”. A ficção científica em Je t'Aime, Je t'Aime, nos anos 60, o filme histórico em Stavisky (nos anos 70), ou, talvez o exemplo mais “programático” de todos, Mélo, nos anos 80, filme que leva logo no título (“Mélo”, em francês, é a abreviatura coloquial de “melodrama”) a identificação do género em que se pretende instalar e sobre o qual quer trabalhar.

Tão interessado pela mais densa profundidade intelectual como pelo mais banal espectáculo popular - “combinação” que de algum modo alimenta a generalidade destes seus últimos filmes – também não lhe escapou o boulevard e o cançonetismo (É Sempre a Mesma Cantiga, nos anos 90), nem evidentemente o teatro. Um dos seus filmes mais importantes é por certo o díptico Smoking / No Smoking, estreado em 1993 e concebido a partir de uma peça do dramaturgo inglês Alan Ayckbourn (autor a que Resnais voltou para Corações, em 2006). A estrutura desse filme, baseada numa série de suposições (“e se...”) criadas e imaginadas a partir de uma situação de base, numa espécie de interminável ficção “alternativa” à própria ficção, condensa possivelmente todas estas preocupações de Resnais: as questões formais, as questões de “género”, a invenção sobre a narrativa e sobre os seus caminhos. Mas também, tema que cruza a sua obra e é muito devedor das suas paixões intelectuais da juventude (o surrealismo, de cujo “pai”, André Breton, Resnais sempre se afirmou “discípulo), a questão da “imaginação”, da contiguidade, sem distinção, de mundos reais e mundos imaginados, de mundos vividos e mundos sonhados, de uma realidade “alternativa” ou “hipotética” directamente implantada na realidade “real”.

Tinha a sua “troupe”, actores que o acompanhavam e se repetiam de filme para filme, alguns deles tornados absolutamente indissociáveis do universo “resnaisiano”: Pierre Arditti, André Dussollier ou Sabine Azéma, com quem era casado. Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri, que com ele trabalharam em É Sempre a Mesma Cantiga, aprenderam tudo com ele, e ainda não deixaram de fazer variações sobre os “mosaicos” narrativos de Resnais.

Há 36 anos, em Providence, Resnais fizera o seu filme sobre o envelhecimento e a morte, em jeito de “comédia negra”. O exorcismo teve o seu efeito: não morreu decrépito, não morreu incapaz, pelo contrário morreu no auge, e em plena festa. Comer, beber e cantar. Sim, vimos tudo com Alain Resnais.

 

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