Se os Deolinda nos cantam, cantemos com os Deolinda

Depois do concerto no Coliseu de Lisboa, os Deolinda actuam este sábado no Porto. Deolinda, Coliseu dos Recreios, Lisboa, 3 de Maio, 21h50 (cerca de 2300 espectadores) 4 estrelas

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Os Deolinda no concerto no Coliseu de Lisboa Miguel Manso

Não é por acaso que à primeira saída de palco se sucede um encore, e depois outro, e ainda um terceiro. Não é por acaso que, num concerto em que são interpretadas todas as canções de um álbum recente, mais um trio delas só disponível na edição especial desse mesmo disco, as palmas a marcar compasso irrompem logo a início, comprometidas com o ritmo e felizmente descomprometidas desse ritual pavloviano das palminhas a pedido que poluem tanto concerto.

Não é certamente por acaso que os Deolinda de Mundo Pequenino, o novo álbum que trouxeram ao Coliseu de Lisboa (este sábado, 4 de Maio, levaram-no ao do Porto), foram capazes de, sem se desvirtuarem, incluírem percussão, metais ou piano na harmonia estabelecida entre a formação original de duas guitarras, um contrabaixo e uma voz. Em disco e em palco continuam, no melhor dos sentidos, os Deolinda de sempre. Ou seja, os das personagens arrancadas a um quotidiano que todos identificamos, os dessa ilusória simplicidade que cola frases no ouvido e melodias no assobio enquanto arquétipos são reconstruídos e desconstruídos com carinho e humor: o fado, o legado de José Afonso ou Sérgio Godinho, se falarmos de música; a fanfarronice, a ternura, o individualismo e o voluntarismo, se falarmos de Portugal.

 Ana Bacalhau, a cantar como nunca a ouvimos – perfeita na forma como geriu a entrega vocal com a “encenação” que pede cada canção  –, surgiu em palco como se já fosse ela mesma, em cada momento, cada uma das vidas cantadas. Provocadora de nariz empinado em Pois foi, tocante na forma como se abandonou totalmente à delicada desesperança de Passou por mim e sorriu, castiça com classe impoluta em Fado Toninho e Fon fon fon (com a tuba de Gil Gonçalves a irromper palco dentro para compor o cenário) e espalha-brasas em Musiquinha, canção “jazzificada” pela secção de metais e agitada pela bateria do “quinto Deolindo” Sérgio Nascimento, pela conversão da pianista convidada Joana Sá ao brinquinho madeirense e pelo bombo de António Serginho – e “abana quem pode” e todos puderam, tanto no alinhamento original quanto no final, no imprevisto terceiro encore em que a Musiquinha foi repetida.

Mas, se não é um acaso a forma como as canções, as novas de Mundo Pequenino e as velhas de Canção ao Lado ou Dois Selos E Um Carimbo, as afadistadas, em marcha de romaria popular ou apimentadas de balanço africano no dedilhado de Pedro Silva Martins e Luis José Martins, se não é por acaso, dizíamos, que estas canções de uma banda renovada sem perder identidade tocaram o público do Coliseu, isso deve-se a esta música continuar a jorrar da mesma fonte (por mais mudanças que o produtor Jerry Boys, sentado na plateia, tenha operado no grupo). De facto, os Deolinda conseguiram chegar a algo muito precioso. Uma capacidade de nos pôr em canção de forma tão certeira, ágil e inspirada, iminentemente popular, que se torna difícil resistir-lhes: é como se a sátira da novíssima Fiscal do fado, só possível a quem ama o fado e o conhece muito bem, o tragicamente cómico e empolgante agit-prop de Movimento perpétuo associativo ou o dueto com António Zambujo, saído directamente da plateia para cantar Não ouviste nada, nos fizessem companhia desde sempre.
 
No Coliseu dos Recreios, com uma sóbria encenação de palco (vermelhos e laranjas projectados em tela branca), não foi preciso mais que isto: o quarteto formado por Ana Bacalhau, Pedro Silva Martins, Luis José Martins e Zé Pedro Leitão, contrabaixista imperturbável, a abrir a sua música à criatividade de outros e esses outros a entrar no espírito das canções como se elas lhes pertencessem – e o vibrafone de António Serginho deu nova camada expressiva a Pois foi, e que bom foi ouvir o piano de Joana Sá tornar etéreo o desconforto de Medo de mim ou a secção de metais (Gonçalo Marques na trompete, Gil Gonçalves na tuba e Mário Amândio no trombone) acentuar o ambiente de fanfarra Felliniana de Doidos.
 
Ao final das primeiras canções, soltou-se um “bravo!” da plateia. A meio do concerto ouviam-se coros de vozes a acompanhar as letras. No final do alinhamento principal, pediu-se o obrigatório encore. E outro se seguiu e um terceiro, certamente fora dos planos, foi exigido. Os Deolinda, já o sabíamos e confirmámo-lo, são um fenómeno. Dos bons. Descobriram música que exalta e toca fundo, que questiona enquanto enleva e faz sorrir. Música magistralmente popular e sofisticada sem aparato. Cantam-nos. Cantemo-los.
 
 Notícia corrigida às 14h: o nome do músico tocador de bombo é António Serginho.
 
 
 

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