Saramago traduzido para português

Foi desta: Saramago está finalmente traduzido. Não para tamil, urdu ou bhojpuri, línguas em que decerto já existirá, mas para português. Sim, para português, o “bom português” que por aí se “acorda”, não aquela grafia quase medieval do século XX. Basta ir à Feira do Livro e lá estão os volumes, em capas coloridas, expostos à curiosidade do comprador. Têm menos consoantes mas isso não é um mal, é um bem. Mesmo que Saramago tenha escrito “tecidos e luxo de confecção” na página 134 de A Viagem do Elefante, é mais fácil ler agora “tecidos e luxo de confeção” na edição moderna, percebe-se logo do que se trata, é óbvio. Além disso, todos os que achavam a escrita de Saramago difícil vão com isto poder lê-lo sem dificuldade. É preciso dizer, a bem da verdade, que Saramago só teve o Nobel porque lhe leram a obra em inglês. Se a lessem naquele português arcaico… coitado dele. Mas pronto: foi enfim salvo.

Aliás, não é só Saramago. Os que escrevem em português adoram traduzir-se uns aos outros, à falta de ocupação mais útil. Talvez depreciem as capacidades de entendimento alheias e resolvam, assim, facilitá-las. Um brasileiro lê inglês no original, mas tem de ler português de Portugal traduzido. Senão não entende, coitado. Um português é capaz de ler francês ou até mesmo alemão, mas se lhe chegam um livro em português do Brasil têm de “adaptá-lo” para que ele entenda. É estranho, no entanto, que muitos portugueses e brasileiros, nas suas viagens, comprem livros cá e lá e mesmo assim os leiam. Devem ser muito inteligentes. Os outros, coitados, os que não viajam por falta de dinheiro ou tempo, têm de ler traduções. De português para português, pois então. Como agora com Saramago, e apenas cá. É engraçado que não traduzam telenovelas, poesia ou letras de canções mas sintam necessidade de ajeitar outras literaturas. O monumental Carmen, de Ruy Castro, por exemplo, foi “adaptado” na edição portuguesa. Não só para lhe pôr mais umas consoantes mas também para alterar termos do vocabulário que os portugueses podiam não compreender. É assim que, na página 224 da edição brasileira (da Companhia das Letras), se escreve “ela seria a última que o curso escolheria como sua garota-propaganda”; e na edição portuguesa (página 225) se “traduz”: “ela seria a última que o curso escolheria como sua imagem de marca”. Assim.

Quando soube que uma das suas filhas posara nua para a capa de um disco, Gilberto Gil comentou apenas: “Precisava, menina?” Podemos, a respeito de tais “traduções”, glosar a frase do cantor e responder de imediato: não, não precisava. O livro de Ruy Castro é bem mais interessante de ler no original, tal como serão todos os livros brasileiros, portugueses, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, guineenses, são-tomenses ou timorenses no uso que cada qual faz da língua falada escrita (e é bom não esquecer que a língua escrita nos remete, pela música intrínseca da sua grafia, para a falada) seja qual for o leitor, desde que esteja familiarizado com qualquer uma das variantes do português.

“Traduzir” de português para português Clarice Lispector ou Saramago, Érico Veríssimo ou Sophia de Mello Breyner é não apenas uma perda de tempo como uma traição aos autores e um atestado de menoridade passado ao leitor. É norma, todos o sabemos. Mas é uma norma miserável. Por isso, escritor de Campinas: se te disserem que tens de ser “aportuguesado” para seres lido em Lisboa, Porto ou Bragança, manda os teus editores para o inferno, exige que te leiam como escreves. E tu, escritor portuense, lisboeta ou transmontano, se te obrigarem a “abrasileirar” a escrita para que possas passar no crivo do entendimento carioca ou paulista, revolta-te e manda-os àquela parte. Que ao menos na escrita o português viva e goze a sua diversidade e se deixe de truques que só fomentam uma cada vez maior iliteracia geral. Têm o direito, todos os que escrevem em português, a circular sem “traduções” e falsificações no espaço daquela que é a sua língua. Orgulhosamente diferentes. Tal como um golo se diferencia e iguala a um “gol”.     

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