Richard Hoggart (1918-2014): contra a cultura do algodão-doce

Foi o primeiro a denunciar que as classes populares estavam a ficar “culturalmente sem classe”. O seu livro, As Utilizações da Cultura, é uma referência sobre os efeitos sociais da chamada cultura de massas que emergiu no pós-guerra.

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Hoggart foi um exemplo de um intelectual comprometido mas independente DR
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Um homem lê "O Amante de Lady Chatterley" no metro de Londres a 3 de Novembro de 1960, dia em que o livro foi posto à venda Corbis

Dois meses depois da morte de Stuart Hall, que mereceu um excelente destaque nas páginas do PÚBLICO, um outro vulto intelectual parte, com 95 anos: (Herbert) Richard Hoggart morreu a 10 de Abril de 2014.

Com trajectórias que se cruzaram — entre outros aspectos, Hall iniciou a sua carreira académica no famoso Centre for Contemporary Cultural Studies fundado por Hoggart na Universidade de Birmingham (1964) e participou na formação da prestigiada New Left Review, conjuntamente com outros compagnons de route como Raymond Williams (autor do importantíssimo Culture and Society, de 1958) e E. P. Thompson —, ambos foram figuras centrais na história intelectual e política do século XX. Contrariamente ao que sucedeu com Hall, o falecimento de Hoggart não recebeu a devida atenção em Portugal.

Com outros colaboradores, ambos deram corpo a uma renovação crítica das ciências sociais e humanas, que em muito extravasou o seu contexto nacional de produção e institucionalização, o Reino Unido. O estudo das interrelações entre o poder, a cultura e a política transformou-se significativamente, dando azo a novos problemas e novas investigações. A valorização das formas culturais populares, a articulação interdisciplinar (da História Social à Linguística, da Antropologia Cultural à Teoria Literária) e a constituição de inúmeros temas e observatórios de análise até então mais ou menos marginais (das questões identitárias de género ou étnicas até às ditas subculturas, passando pelos estilos de vida) formaram a imagem de marca dos chamados Estudos Culturais. Tanto Hall como Hoggart ajudaram a erguer os Estudos Culturais como projecto intelectual — de compreensão do fenómeno de emergência e globalização das indústrias culturais — mas também enquanto projecto cívico, de intervenção crítica e informada na sociedade.

Neste empreendimento, o livro de Hoggart The Uses of Literacy: Aspects of Working-Class Life (1957), traduzido para português em 1973 (As Utilizações da Cultura – aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais referências a publicações e divertimentos; Editorial Presença), tem um lugar central, ainda que por vezes estranhamente esquecido, apesar de muitas das suas ideias continuarem a ecoar nas mais variadas apreciações críticas sobre os efeitos sociais da chamada cultura de massas. Como o próprio Hall sublinhou várias vezes, sem As Utilizações da Cultura a disciplina do Estudos Culturais não teria sido possível.

Apesar das suas limitações conceptuais e metodológicas (por exemplo, o carácter não sistemático dos seus dados empíricos), a interrogação dos usos e dos efeitos sociais que as novas formas massificadas de comunicação e de literacia implicavam nas classes populares tornou-se uma referência central, não apenas na academia. Os debates sobre a sociedade da afluência teriam sido necessariamente outros sem o livro de Hoggart. Pelas mesmas razões, os debates contemporâneos sobre a sua decadência podem beneficiar de uma revisitação da obra de Hoggart.

De facto, o seu livro oferece uma análise original de um contexto histórico em que o sistema heterogéneo de valores, códigos e práticas culturais das classes trabalhadoras urbanas se viu confrontado com as mudanças políticas, económicas e socioculturais do pós-guerra. Mais concretamente, as transformações na economia e nas culturas de consumo, marcadas pela americanização e massificação estandardizada dos bens simbólicos, nas quais a razão publicitária e o marketing estabelecem o seu sentido, acarretavam a nefasta desestruturação do tradicional universo cultural de classe que a obra magistral de E. P. Thompson, The Making of the English Working Class (1963), cartografou historicamente anos mais tarde.

O mundo do algodão-doce tomara conta da cultura operária. Como escreveu, as classes populares estavam a ficar “culturalmente sem classe”. Contudo, apesar de se inscrever numa longa e pessimista narrativa sobre os declínios da cultura, Hoggart nunca se encerrou nos seus dogmas.

A cultura de massas estava cheia de “brilho corrupto, de apelos impróprios e de evasões morais” (para cujo resultado os tabloides contribuíam enormemente) e promovia a ideia de que o “progresso” se resumia à “obtenção de bens materiais”, numa descrição que ainda hoje se mantém apelativa para muitos. A igualdade prometida resumia-se, na realidade, à industriosa promoção da uniformidade e da homogeneização culturais, por via do entretenimento e do consumo de massas. A cidadania era resumida ao consumo. A frivolidade do modernismo prevalecera.

Na sua análise deste processo histórico, Hoggart nunca caiu, contudo, na desvalorização simplista da iniciativa dos actores históricos. Como escreverá Thompson, a classe operária não nasceu como “o sol numa hora determinada”. Ela estava presente na sua própria emergência, no seu fazer-se.

Richard Hoggart assumiu um papel destacado na defesa de múltiplas causas públicas. Foi figura central na definição de uma política pública dos meios de comunicação social, nomeadamente através do Pilkington Committee on Broadcasting (1960), cujo relatório (27 de Junho de 1962) criou condições para a emergência da BBC2. Foi preponderante no estabelecimento de uma política cultural e artística nacional menos dominada pela cultura das elites urbanas, nomeadamente através do Arts Council of Great Britain (1976-1981), do qual foi despedido por Margaret Thatcher. Foi ainda voz activa nos debates sobre a necessidade e as virtudes da educação contínua e para adultos, sobretudo no interior do Advisory Council for Adult and Continuing Education (1977–1983).

D. H. Lawrence obsceno?

Hoggart foi ainda uma das testemunhas-chave num dos mais importantes processos que contribuiu para a gradual liberalização das leis sobre a pornografia no Reino Unido: o famoso julgamento de 1960 em torno do livro de D. H. Lawrence, O Amante de Lady Chatterley (1928). Este julgamento decorreu sob a égide do Obscene Publications Act de 1959, que permitia que a acusação de obscenidade fosse contornada caso ficasse demonstrado o mérito literário de uma obra. Inquirido sobre a validade das descrições que apontavam este livro como pouco mais do que uma “indulgência viciosa em sexo e sexualidade”, Hoggart retorquiu que “not at all, não é uma obra viciosa. É uma obra plena de virtude e, se é alguma coisa, é puritana, isso sim”. A obra de Lawrence era “um livro moral”.

Perante o tribunal, Hoggart embarcou numa brilhante análise sócio-linguística dos termos do debate (do sentido do adjectivo puritano, por exemplo), oferecendo à audiência uma exemplar demonstração da sua erudição, da sua perspicácia crítica e de uma enorme capacidade de imaginação sociológica, rigor histórico e olhar artístico (o seu primeiro livro foi um ensaio sobre a poesia de W. H. Auden, em 1951).

Ao lado de E. M. Forster e Raymond Williams, o testemunho de Hoggart contribuiu para o veredicto de not guilty, o que permitiu à Penguin continuar a publicação da obra de Lawrence. A última estocada no moralismo vitoriano fora dada 65 anos depois do início do julgamento de Oscar Wilde.

Hoggart gostava de citar um outro grande nome da cultura e da academia inglesas, o historiador económico R. H. Tawney (autor, entre outras obras de referência, de The Aquisitive Society, de 1920): “a trivialidade é mais perniciosa para a alma do que a maldade”. Esta frase constituiu um leitmotiv para a sua colaboração no Relatório Pilkington, que redigiu quase na totalidade. Repetiu-a com assiduidade por achar que os valores da independência crítica, do argumento e do debate sérios e informados, e da recusa em legitimar o publicismo dos invertebrados e dos oportunistas, constituíam valores centrais a preservar, tanto na academia e no jornalismo como na política e na sociedade em geral. Com todos os potenciais excessos associados, Hoggart não perdeu de vista a necessária moralização do espaço público, preservando, no essencial, o seu idealismo radical, simultaneamente conservador e elitista.

Literacia crítica

Foi implacável com inúmeros relativismos, acríticos e de utilização fácil, sobretudo os que surgem inequivocamente associados a populismos e demagogias várias, prometendo emancipações de toda a espécie, mesmo se só atingidas teórica e reflexivamente. Talvez por isso a sua morte não tenha merecido uma outra atenção.

Hoggart foi um exemplo de um intelectual comprometido mas independente, que não se subjugou aos ciclos das “grandes causas” e das modas do pronto-a-pensar (ou do pronto-a-agir), com uma noção clara da importância do serviço público, tanto a nível interno como externo. Os relatos que produziu dos anos que passou na qualidade de director-adjunto da UNESCO, reunidos em An Idea and Its Servants: UNESCO from Within (1978), são disso prova mais do que suficiente. Enquanto denunciava as tendências isolacionistas de certos sectores britânicos — relembre-se que Margaret Thatcher ordenará a saída do Reino Unido da organização em 1986, na sequência de uma decisão similar tomada por Ronald Reagan, recorrendo ao argumento, entre outros, de que esta se tinha tornado demasiado politizada, num sentido contrário aos “valores ocidentais” —, Hoggart não deixou de identificar os desvarios burocráticos, a pequena política nacionalista e o desvirtuamento da missão pública no interior da UNESCO por parte dos seus supostos servidores.

Hoggart foi ainda um defensor intransigente de uma “literacia crítica” enquanto instrumento de cidadania plena. Sem literacia e sem espírito crítico o exercício dos deveres e o usufruto dos direitos de cidadania eram vistos como impossíveis. A este propósito, apesar de remeterem para contextos históricos específicos marcados por problemas particulares, os seus As Utilizações da Cultura e Higher Education and Cultural Change (1966) constituem dois dos mais poderosos argumentos a favor do potencial emancipatório do ensino superior, gerador de dinâmicas de (justa) recomposição social e de coexistência cultural, em suma, de aprimoramento cívico.

Num contexto marcado por profusos simplismos sobre a importância da educação (e da formação e investigação científicas) e dominado por ruidosos e calculistas reducionismos, que tendem a mercantilizar, ainda mais, este domínio, talvez fosse interessante recuperar algumas das suas ideias. Os usos políticos da (i)literacia têm de continuar a ser investigados.

ICS-UL

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