Renato Berta: “No cinema, vivemos actualmente numa absoluta desordem das imagens”

O Velho do Restelo é o novo filme de Manoel de Oliveira. Para o fazer, reuniu alguns dos nomes que fazem parte da sua trupe habitual, entre os quais está o operador de imagem suíço Renato Berta, que confessa ter ficado simultaneamente “assustado” e “emocionado” quando foi convidado para trabalhar com o cineasta português

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Renato Berta, o director de fotografia que esteve no Porto a filmar com Manoel de Oliveira Lara Jacinto/nfactos
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Renato Berta é o director de fotografia (n. Bellinzona, Suíça, 1945) dos últimos filmes de Manoel de Oliveira, com quem começou a trabalhar em Party (1996). É um dos realizadores com quem mais tem trabalhado, ao lado de outros nomes maiores do cinema europeu, como Alain Tanner, Jean-Marie Straub, Jean-Luc Godard, Éric Rohmer, Alain Resnais, ou o israelita Amos Gitaï.

O PÚBLICO falou com o operador suíço no Porto, num intervalo da rodagem do novo filme do realizador de O Gebo e a Sombra.


O Velho do Restelo é já o 8º filme que faz com Manoel de Oliveira. Como aconteceu o seu encontro com o realizador português?


Devo confessar que, nessa altura, fiquei assustado com a ideia de ir trabalhar com Manoel de Oliveira. Ia filmar com um grande realizador, numa época da sua vida em que apresentava já uma carreira fenomenal, com filmes grandiosos atrás. Eu também já tinha feito alguns filmes. Mas não era evidente, para mim, que esse seria o momento certo para os nossos caminhos se cruzarem...

 Foi o produtor Paulo Branco quem o convidou?

Sim. Ele já me tinha dito, uma vez, que havia um realizador com quem eu deveria trabalhar, que era Manoel de Oliveira. Respondi: “Está bem; põe-me então a trabalhar com ele”. Mas isso nunca mais acontecia, por diferentes razões. Havia o Mário Barroso [director de fotografia dos filmes anteriores de Oliveira] e outros grandes directores de fotografia com quem ele trabalhava. Então surgiu a ocasião de eu finalmente trabalhar também com Oliveira, em Party. Como lhe disse, fiquei assustado. E é preciso dizer que, sempre de uma forma muito elegante, o Manoel também manifestava uma certa desconfiança... E digo isto de uma forma muito afectuosa, sem nenhum sentido negativo ou crítico. Simultaneamente, fiquei muito emocionado por poder trabalhar com um realizador que tinha feito filmes, e escolhas cinematográficas que, a meu ver, eram essenciais – mesmo se podemos estar ou não de acordo com elas.

 
Pode-se falar na existência de um “método Oliveira” no plateau?

Não sei se se pode falar de método. Tive a possibilidade de fazer filmes muito diferentes com ele, e é verdade que, em cada um deles, é preciso perceber o que é que o realizador procura. Não tanto aquilo que ele diz que quer, porque um realizador que se exprime assim – “Eu sei exactamente aquilo que quero” – acaba por se mostrar frágil. Há muitos grandes realizadores, com quem trabalhei, que sabem bem o que querem, mas no fim do nosso trabalho ficamos surpreendidos, porque acabamos por descobrir outras coisas que não imaginávamos. Há sempre um clique, uma pequena coisa que faz com que a descoberta se torne verdadeiramente importante. Isso é também importante na ciência, não só na nossa profissão. Como em qualquer trabalho de criação, somos confrontados com sistemas, métodos, mas quando os realizadores não fazem mais do que aplicar os métodos, pouco a pouco acabam por exaurir-se. No caso do Manoel, há sempre uma renovação nos seus filmes, nos argumentos, nos temas... É verdade que são filmes também marcados pela presença, maior ou menor, para o bem ou para o mal, de Agustina Bessa-Luís. É um verdadeiro encontro de personagens…

E o seu trabalho com o cinema de Oliveira coincidiu com o momento forte da parceria com Agustina, com Party, Inquietude, O Princípio da Incerteza, O Espelho Mágico

Sim. E foi aí que conheci Agustina – que encontro (risos)!... É absolutamente fenomenal poder encontrar pessoas como estas, podermo-nos confrontar com personalidades tão fortes e tão diferentes, como o são Manoel e Agustina... Eles têm um olhar muito agudo sobre a vida.

 

E sabemos que são olhares diferentes, e que nem sempre foi um encontro fácil…


Mas é um olhar que dinamiza a aproximação de temas e de personagens… Trata-se sempre de algo muito profundo, e não apenas o resultado de uma especulação intelectual – meu deus, estou a utilizar conceitos muito fortes!... É uma especulação que parte de coisas vividas, e que depois são digeridas a partir de um ponto de vista, de um pensamento.

 

A rodagem de O Velho do Restelo está a ser um trabalho diferente dos anteriores…


É uma experiência diferente. Quando trabalhamos com grandes cineastas e autores, é preciso procurar compreender quais são as motivações que os levam a fazer um filme, quais os desafios. É claro que, normalmente, há um argumento, mas isso, por si só, não é grande coisa. O importante é saber o que se vai fazer dele. Já me aconteceu ler argumentos magníficos, que depois são completamente destruídos pela mise-en-scène, porque os realizadores não estavam à altura daquilo que eles próprios queriam dizer. O caso de Manoel de Oliveira é que ele me surpreende, nos surpreende, a cada momento.


Oliveira costuma fazer muitas mudanças no decorrer da rodagem?


Sim. Com o Manoel, às vezes, não percebemos bem onde é que ele quer chegar. Mas depois chegamos lá, e vemos que é muito pragmático no seu modo de trabalhar. Passo a passo, ele constrói os planos e as sequências de uma forma muito simples. Não se trata nunca de exigências impossíveis e imbecis, mas antes de qualquer coisa muito concreta, e de que podemos falar de forma clara. E é verdade que depressa atingimos uma certa profundidade, e se podemos compreender – ou, em todo o caso, interpretar – a forma como ele ataca um certo problema, inevitavelmente tornamo-nos cúmplices. Mas temos de estar sempre muito atentos e intuitivos. O momento em que estamos a compor um plano é sempre um grande momento, e podemos fazê-lo durante horas…


Trabalhou com os maiores autores do cinema europeu…

Sim. É verdade que pratiquei com alguns quantos (risos)…

 … de tal modo que se pode dizer que é o director de fotografia das “novas vagas” suíça e francesa, de Alain Tanner a Alain Resnais…

Sim. Fiz muitos filmes com o Alain Tanner, mas depois fiz também filmes de uma certa envergadura com Resnais. Não fiz os últimos filmes dele, porque o produtor não quis, por aquelas histórias sórdidas de produtor. Mas estive sempre próximo dele. Infelizmente, e tristemente, vi-o na véspera da sua morte [1 de Março de 2014], no hospital. Tive sempre com ele uma relação de respeito, de reconhecimento, e mesmo uma certa amizade. Telefonávamo-nos e víamo-nos com frequência. Organizei mesmo um encontro dele com o Manoel de Oliveira, há já mais de uma década, em minha casa… Eles não se conheciam, e correu muito bem: fartaram-se de falar de uns e de outros. Dois grandes conversadores e homens charmosos.


Mas a sua carreira começou verdadeiramente com Alain Tanner, na sua Suíça natal [com o filme Charles Mort ou Vif, em 1969].


Sim. Comecei com ele – que agora está praticamente parado. Devo-lhe muito, na medida em que praticamente começámos a fazer cinema juntos – ele já tinha feito alguns filmes, mas, verdadeiramente, filmes relativamente importantes, começámos a fazê-los juntos. Fiz seis filmes com ele, evoluímos juntos, eu como director de fotografia e ele como realizador… Mas também é bom mudar de ares, não trabalhar sempre com as mesmas pessoas, porque há sempre uma certa rotina e inércia que se instala. É por isso que o ideal, para mim, mesmo nos realizadores que frequentei muito, como o Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, é fazer alguns filmes, parar e depois voltar. Sempre num ir e vir...

 
Trabalhou também muito com o realizador israelita Amos Gitaï.


Foi também um encontro importante para mim. Porque, para começar, o Amos Gitaï é de um país em relação ao qual eu não tinha grande afinidade, sobretudo do ponto de vista político. Além de que não era um país que eu sonhasse conhecer, ou sequer visitar. Mas o Amos Gitaï propôs-me ir trabalhar com ele, e acabou por ser o momento certo para me aproximar do país. E devo dizer que percebi que tinha bastante ideias feitas erradas: Israel é um país onde o debate de ideias não só existe como é deveras importante. Descobri lá as ideias mais incríveis por metro quadrado: as mais abertas, as mais loucas… Há de tudo. Fiquei mesmo muito surpreendido com este país, e aprendi muito.

 

Por que não trabalhou com outros realizadores portugueses?


Não aconteceu. Não surgiram propostas. A questão deve ser colocada, se calhar, aos cineastas portugueses. De qualquer modo, tenho boas relações com o país, e há muita gente com quem tenho bons contactos aqui, de quem fiquei amigo e que vejo regularmente. Portugal é um país que sempre me fascinou.

 

Disse que visitou Portugal pela primeira vez em 1974. Veio ver a Revolução?

Viemos fazer, para a televisão, um retrato do Otelo Saraiva de Carvalho. Não tivemos muitos contactos com cineastas, na altura, foi mais com políticos. Mas é verdade que, na altura, encontrei um país que me impressionou, por diversas razões. A começar pela língua. Eu sou suíço-italiano e falo um “patuá”… Nunca percebi porquê, mas há expressões no italiano que são como em português. Lembro-me de que quando ouvi pela primeira vez Mário Soares, quando o filmámos num comício, ouviu-se a certa altura: “dez minutos de pausa”. É exactamente como nós dizemos, um patuá… É bizarro e engraçado. Perguntei muitas vezes, aqui em Portugal, porque é que isso acontece, e ninguém soube responder...

 
Viveu de perto os tempos e a euforia da Revolução portuguesa. Hoje está tudo diferente, em Portugal e na Europa. Como é que vê o futuro?

Estou um pouco surpreendido com aquilo a que chamamos a globalização, mas que, afinal, é antes a americanização do mundo. Quando agora vimos, e ouvimos, as reportagens na Ucrânia com os jovens a falar todos inglês, e que só têm a América na boca, é surpreendente. E, mais do que isso, é trágico, porque se essa gente acredita que a América vai fazer alguma coisa por eles, depois do que fizeram no Afeganistão, no Iraque…

 
E como vê o futuro do cinema?

É a mesma coisa – está na mão dos americanos. Não me refiro tanto à fabricação dos filmes, porque, objectivamente, nós podemos fazê-los também. O problema é que eles, depois, não são vistos, não têm difusão. Mesmo em França, hoje em dia, até os distribuidores maiores, os que têm uma certa autonomia, tornaram-se sucursais da indústria americana. E quando vemos que há em Bruxelas uma delegação do cinema americano para defender os seus interesses, isso diz tudo.

Normalmente vemos a França como o último lugar de resistência ao poder do cinema americano…


Mas isso está a acabar. Vivemos numa época em que a contabilidade é o único motor da sociedade e a sua motivação definitiva. Até os chineses, e os países mais antigos, têm a mesma regra. O capitalismo financeiro está a destruir tudo. A contabilidade e os cálculos são mais fortes do que as ideias. E Manoel de Oliveira compreendeu muito bem esse discurso. É uma ditadura ideológica muito forte, mesmo se não se trata de uma ideologia – ela está na rádio, em todo o sistema dos media. Se ouvimos música neste hotel, é a música americana, seja ao pequeno-almoço ou a qualquer outra hora, em qualquer lugar. Para mim, é a pura ideologia.

 
No seu trabalho, como é que reagiu à nova tecnologia digital?

É a mesma coisa. O digital, primeiro que tudo, é evidente que significa uma democratização – permite a todo o mundo comunicar através das imagens e sons. Mas não é porque registamos imagens e sons que fazemos cinema. Hoje, estamos perante uma salada absolutamente inacreditável. A todos os níveis. É como na literatura e na escrita: se escrevemos bem, tanto melhor, mas não é porque sabemos escrever que nos tornamos escritores e fazemos literatura. No cinema, vivemos actualmente numa absoluta desordem das imagens. Graças ao digital, as pessoas deveriam colocar-se problemas, questionar a realidade, mas não o fazem. Agora toda a gente é cineasta. Mas quando vemos a qualidade das imagens e dos sons, acontece como com a música que ouvimos quando estamos num hotel…


Mas a verdade é que a película acabou.

Sim. É verdade. Mas não sou um nostálgico da película. Também não é porque metemos película numa câmara que fazemos cinema. Aí estou absolutamente de acordo com Manoel de Oliveira – o digital não é mais do que um suporte.

 
Mas a película foi mais do que um suporte; foi uma linguagem e a base de toda uma cultura cinematográfica que durou um século, e que agora está a terminar…


Mas isso acontece com tudo, com a tecnologia que utilizamos hoje, com os automóveis... É verdade que há sempre algo que se perde. Mas também perdemos os dinossauros, quando eles se extinguiram. Feliz ou infelizmente, são fenómenos que estão para além da nossa possibilidade de os controlar.

 

 

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