Quando a música clássica não está do lado do bem

Alimentamos a ideia de que a música clássica é algo que nos eleva o espírito e faz de nós melhores seres humanos. Mas devemos também exigir a quem a interpreta o exemplo público?

Foto
CARLOS GARCIA RAWLINS/REUTERS

O imaginário colectivo alimenta o mito de que a música clássica é um bem que nos eleva o espírito mais do que qualquer outra coisa que nos aconteça na vida. E esse pensamento leva-nos a outro: os músicos ditos eruditos têm o dever de estar do lado do bem e da verdade. Quando falham nesse propósito, não faltam as reacções que variam entre o desapontamento e a condenação. 

Em Fevereiro, enquanto entrevistava o maestro Valery Gergiev para a CNN, Fareed Zakaria [jornalista especialista em política internacional], acabou por resumir muito bem esta posição, apesar de o ter feito de forma involuntária. Gergiev é um apoiante confesso do Presidente russo Vladimir Putin e ainda recentemente veio defender abertamente a posição governamental russa sobre a situação na Ucrânia e Crimeia. “A relação que mantém com o Presidente Putin já foi criticada por muita gente. São pessoas que vêem Putin como um homem de peso e que não tem sido condescendente com os direitos humanos e que o vêem a si como artista, logo alguém que se deveria assumir em defesa desses mesmos direitos”, disse-lhe Zakaria durante a entrevista. Podemos olhar para isto como um dado adquirido? Para muitos, sem dúvida. 

Um dos casos mais em destaque nos nossos dias é o de Gustavo Dudamel, o maestro que na noite da passada terça-feira dirigiu a Filarmónica de Los Angeles num concerto no Kennedy Center. Dudamel é, para muitas pessoas, a figura de proa do que a música clássica pode fazer em prol dos mais jovens. É o produto mais visível do programa venezuelano El Sistema, um projecto que, resumindo em poucas palavras, põe instrumentos musicais nas mãos de crianças de bairros desfavorecidos para lhes ensinar música mas também para que aprendam com os benefícios do trabalho árduo, do empenho e da camaradagem. Estes extraordinários dons de Dudamel justificam o estrelato que alcançou quer enquanto maestro da orquestra de topo do El Sistema, a Sinfónica Simón Bolívar, quer enquanto director musical da Filarmónica de Los Angeles, e acabaram por chamar a atenção do mundo para o projecto do El Sistema, havendo hoje iniciativas que o tentam imitar, de Los Angeles a Baltimore.

Agora, a Venezuela tem vindo a assistir a violentas vagas de protesto da população contra um Governo que responde com a violência militar, o mesmo que se mostra incapaz de dotar o seu povo com bens básicos num país que tem uma das maiores taxas de inflação do mundo [56%]. Contudo, Dudamel continua a tocar na Venezuela: ainda em Fevereiro, precisamente um dia depois de uma dessas manifestações violentas [a 15 de Fevereiro os confrontos entre população que se manifestava contra o custo de vida e as forças de autoridade saldaram-se em 66 feridos, três mortos e 69 detidos], esteve num concerto a dirigir a Simón Bolívar. Foi isto que levou a pianista Gabriela Montero a escrever uma carta aberta a Dudamel e ao fundador do El Sistema, José António Abreu. Montero cresceu na Venezuela — aliás, chegou a receber uma bolsa de estudo do Governo venezuleano e a actuar com a orquestra antecessora da Simón Bolívar — mas tem vivido a maioria da sua vida adulta nos Estados Unidos. Na carta, Montero dirigiu-se aos mentores do El Sistema alertando para o facto de estes terem “a obrigação moral de assumir uma atitude pública correndo os riscos que forem necessários à condenação da ditadura que agora nos oprime”.

A carta foi amplamente divulgada pelas redes sociais e imprensa, e Dudamel apressou-se a responder-lhe. Numa curta declaração, o maestro concluía: “A nossa música representa a linguagem universal da paz, pelo que lamentamos os acontecimentos de ontem [15 de Fevereiro]. Com a nossa música e os nossos instrumentos, dizemos claramente ‘Não à violência’ e damos eco do ‘Sim à paz’.” Não se referiu ao regime de Nicolás Maduro nem aos seis governos anteriores que financiaram o El Sistema ao longo dos anos. Contudo, escreveu uma declaração mais alongada aos membros da Filarmónica de Los Angeles dizendo, entre muitas outras coisas, “não posso permitir que El Sistema se venha a tornar uma vítima da política”.

Foto
Valery Gergiev é condecorado pelo Presidente Vladimir Putin com o prémio Herói do Trabalho ALEXEI NIKOLSKY/AFP

Entretanto, Gergiev, que também já tinha comentado os protestos contra a nova lei russa que torna crime a “propaganda da homossexualidade junto de menores”, referiu-se igualmente à situação na Ucrânia numa entrevista publicada numa revista russa. “Os slogans que temos andado a ouvir são abertamente fascistas. Na Ucrânia, esses slogans provêm de pessoas que dominam quase por completo o país”, disse. Nessa mesma entrevista, Gergiev acrescentou ainda que a Guerra Fria continua viva e de boa saúde e que o Ocidente se deve abster de interferir. E depois disto colocou o seu nome numa lista de mais 19 proeminentes personalidades da elite cultural em favor de Vladimir Putin — no ano passado, o Presidente russo atribuiu a Gergiev o prémio Herói do Trabalho —, dirigindo-se-lhe como “o Presidente da Rússia e da Ucrânia-Crimeia”.

Se Dudamel ficou a poucos passos de tomar uma posição política, aos olhos do Ocidente Gergiev tomou-a, mas foi a errada. E, aos olhos do público em geral, isso merece ser condenado? É razoável que esperemos deles, de facto, uma atitude pública? Será que temos essa mesma expectativa em relação a outras figuras líderes como atletas, actores, bailarinos, poetas? 

A questão moral

O efeito Mozart foi desmascarado: ouvir Mozart não cria, de facto, crianças mais inteligentes. Mas ainda assim fica a ideia de que a música clássica é boa e benéfica para cada um de nós. Efabulamos sobre o bem grandioso da música clássica, facto que pode muito bem estar a estorvar a divulgação de programação mais contemporânea. Se a música clássica, com as suas regras de tonalidade e harmonia e a sua matriz clássica de concerto, sinfonia e quarteto é algo que entendemos de uma forma intuitiva, ainda que inconscientemente, como uma entidade moral, então as pessoas podem reagir negativamente quando essa música, feita debaixo de uma capa de “clássica”, afinal não lhes traz, nem representa, assim tanto o Bem que dela esperavam.  

Posto isto, é um pequeno passo até chegar à ideia de que a música clássica é moralmente superior — que faz de cada um de nós um ser melhor, até mesmo melhor do que os outros. Mas isto não passa de uma interpretação demasiado a preto e branco de uma forma de arte cuja principal riqueza advém da sua propensão para a ambiguidade (pense-se, por exemplo, na miríade de interpretações possíveis já demonstradas por vários pianistas para as Variações de Goldberg, de Bach). Também não explica os casos em que a música clássica não atinge o seu ideal, nem aqueles em que os seus intérpretes “escorregam” moralmente ao longo das suas vidas.

Richard Wagner, no seu ostensivo anti-semitismo e com as suas poderosas óperas — e, a um certo nível, muito humanas —, é disto exemplo. Para algumas pessoas, a música de Wagner nem deveria ser tocada. Num livro francês editado recentemente (La musique à Paris sous l’Occupation, de Myriam Chimènes e Yannick Simon, edição Fayard — Cité de la Musique), é-nos contada a vida do pianista Alfred Cortot, que comissariava as Artes no Governo de Vichy e era a favor de uma França sob ocupação nazi. Cortot sempre demonstrou tendências anti-semitas e isso pode afectar para a posteridade a maneira como ouvimos as suas maravilhosas interpretações. 

A questão é esta: até que ponto as decisões de um artista podem afectar a sua arte, e quanto é exigido aos grandes artistas para darem um exemplo público daquilo que é correcto fazer? Alguns músicos usam o seu reconhecimento para alertar para causas sociais — veja-se o que fez Daniel Barenboim e a Orquestra West-East Divan em nome dos jovens músicos israelitas e árabes. Já Evgeny Kissin demonstrou publicamente o seu compromisso ao judaísmo ao ganhar a cidadania israelita e levar até Washington um programa onde misturou obras de compositores judeus quase desconhecidos e poesia yidish.

Foto
Em 2008, a Filarmónica de Nova Iorque, então sob direcção de Lorin Maazel, deu um concerto na Coreia do Norte DAVID GRAY/REUTERS

A posteridade é muito menos severa do que as considerações públicas feitas no momento, que tendem a difamar quando é fácil (como aconteceu com a soprano Germaine Lubin, que acabou com a própria carreira por se mostrar sempre tão disponível para actuar enquanto a França esteve sob ocupação nazi), ou fechando os olhos quando é conveniente (Herbert von Karajan).

Claro que não podemos esquecer as figuras do mundo da música que optaram por tomar a decisão moralmente correcta no momento certo. O maestro Kurt Masur trabalhou de perto, e com sucesso, com vários governos da Alemanha oriental. Em 1989, durante os protestos em Leipzig, saiu a público para defender a não violência, o que certamente influenciou os eventos que levaram à queda do Muro de Berlim de uma forma pacífica — e que lhe valeu o lugar de director da Filarmónica de Nova Iorque, em grande parte por se ter afirmado um defensor da liberdade.

Mas o palco político não serve a todo e qualquer artista. Quem o usa, ainda que involuntariamente, pode até ver a sua “mensagem” subvertida.  

Outro exemplo disso mesmo é a actuação da Filarmónica de Nova Iorque na Coreia do Norte, em 2008, então sob direcção de Lorin Maazel: podemos vê-lo como um acto nobre de diplomacia cultural ou de conivência com o regime?

Mesmo que um artista não tome posição alguma, pode sempre ser imediatamente catalogado de colaboracionista. Gergiev, por defender o regime russo, talvez tenha mesmo merecido os apupos que teve em alguns dos seus concertos em 2013 (apesar de outros artistas da antiga União Soviética a isso terem sido poupados quando actuavam no Ocidente durante os tempos da Guerra Fria). Não podemos deixar de nos questionar se o público que protestou contra os concertos que o Quarteto de Jerusalém e a Filarmónica de Israel deram em Londres em 2010 e 2011 conheciam realmente o apoio destas formações ao Governo israelita.

O caso de Dudamel está longe de ter contornos muito nítidos. Acusar publicamente o Governo que financia o seu programa — caso se sentisse inclinado para o fazer — poderia pôr em perigo o seu futuro. E poderíamos afirmar, de um ponto de vista moral, que teria sido assim tão mais acertado do que manter esse mesmo programa que, já se sabe, vai beneficiar milhares de jovens? 

É verdade que para alguns a sua atitude é de conivência e pode manchar a sua obra; mas para outros é um sinal claro de que Dudamel coloca a música e os benefícios que traz à sociedade em primeiro lugar. 

Se ainda nem encontrámos respostas para os dilemas morais que Wagner nos coloca, quanto mais em relação a um maestro vivo... Mas já que as pessoas que levantam este tipo de questões, com os media à cabeça, tendem a apagar as nuances que o tema envolve, é bem possível que Dudamel continue, mal ou bem, a ser um tema bem quente quando se fala da Venezuela enquanto a situação intolerável que o país vive actualmente não tiver o seu desfecho.

Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post

Sugerir correcção
Comentar