Quando a criatividade se esconde

Os bloqueios criativos são frequentes? A encenadora Mónica Calle ou o realizador Joaquim Sapinho, entre outros, falam dos momentos em que criatividade parece fugir.

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Miguel Manso Mónica Calle parou durante dois anos para “reencontrar o percurso”
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Enric Vives-Rubio Joaquim Sapinho, realizador de cinema, encontra bloqueios nas conexões dos vários caminhos que levam à criação de um filme

Têm profissões criativas, estão habituados a olhar para a vida e a ter ideias. Levam-nas para cima dos palcos, ou para ecrãs de cinema, preenchem páginas ou encontram soluções para desafios. Mas, por vezes, também eles sentem que o mundo se fecha, ou eles próprios têm necessidade de se fechar, porque se sentem bloqueados.

“Há momentos em que simplesmente as pessoas não têm ideias”, afirma Mónica Calle pelo telefone. Criou a Casa Conveniente em 1992, no Cais do Sodré, e, aos 45 anos, já encenou e interpretou dezenas de projectos. “Houve alturas em que não tinha questões para colocar do ponto de vista artístico e precisava de parar, repensar, ler”, conta a encenadora e actriz com naturalidade

Ana Passarinho Sousa, psicóloga clínica, considera que os bloqueios criativos são frequentes, sobretudo “quando as pessoas estão mais saturadas, com poucos períodos de descanso. São pessoas que dão o máximo, geralmente com pouco tempo de intervalo entre projectos”.

Ao longo de 20 anos, Mónica Calle tem dado o máximo, mas o primeiro bloqueio surgiu logo em 1994, dois anos depois do primeiro espectáculo que encenou, A Virgem Doida. “[Coincidiu] com o desmembramento do grupo inicial do Conservatório – [a escola artística de Mónica] – e senti-me um pouco bloqueada. Trabalhei como actriz durante um ano e tal, quase dois, mas não como encenadora”.

Mais tarde, em 2005, deu-se um bloqueio maior que a obrigou a parar durante dois anos para “reencontrar o percurso”. Acabava de apresentar Julietas – Cartas fragmentárias a um amor perdido, na Culturgest, um projecto que não correu bem. “Senti um grande vazio, estava esgotada e precisava de parar”. A mudança de espaço - de uma antiga loja de utensílios de pesca para uma zona de bares, ambos no Cais do Sodré – também não ajudou. Parar significou convidar outras pessoas para assumirem a encenação dos espectáculos e dedicar-se a trabalhos de produção e à gestão da companhia, mantendo-se afastada da vertente criativa.

“Às vezes, é necessário dar um tempo para poder voltar a ter necessidade de um novo projecto”, acrescenta. Foram dois anos e, em 2007, as questões artísticas voltaram. Mónica Calle respondeu-lhes a uma única voz, com um monólogo – A Última Gravação de Krapp – que encenou e interpretou e, por isso, lhe permitiu uma abordagem mais radical.

Um romance que saiu melhor do que o esperado

Clara Pinto Correia também soube dar a volta por cima a uma situação difícil e voltar à escrita em força, depois de o único bloqueio que sentiu em toda a sua carreira de escritora, bióloga e professora universitária.

Em 2008, com 48 anos, tinha voltado dos Estados Unidos pronta para escrever um romance e terminar uma obra científica que trazia quase concluída, mas a vida trocou-lhe as voltas.

Na literatura é habitual haver bloqueios. A angústia da folha em branco e o constante tique-taque como banda sonora é uma imagem quase cinematográfica. Clara viveu dois anos angustiada, ao ponto de não tentar sequer escrever.

“Entre os meus 48 e 50 anos envolvi-me numa relação destrutiva que me desorganizou completamente e me deixou num estado de consciência alterado”, conta a escritora num discurso pausado e reflectido. “Mal essa relação começou deixei de ter capacidade de escrever. Durante dois anos não escrevi uma linha e a minha capacidade de docência também estava debilitada”, conta Clara, para quem a ficção é como “meditação transcendental” e os trabalhos científicos um motivo de fascínio.

Depois desse período, precisou de se “limpar por dentro”. Com caminhadas sozinha pela floresta e sessões de jejum, conseguiu reencontrar-se e voltar à escrita. Escreveu Não Podemos Ver o Vento, sobre a guerra colonial em Moçambique, e a obra – para a qual tinha passado oito anos a pesquisar, sem contar com os dois anos de interrupção – saiu-lhe melhor do que pensava. “Aquilo fazia-me tanta falta e eu sentia que estava a sair bem, melhor até do que antes. Às vezes, acabava um parágrafo e dava um murro na bancada como se gritasse Yes!", recorda divertida. Nos anos seguintes, gritou mais vezes de satisfação e a criatividade voltou para ficar.

Para Ana Passarinho Sousa, esta é uma situação comum. “Depois de desligar, descansar e reflectir, os próximos resultados ou são iguais ou melhores do que antes”, afirma. Carlos Ferraz, psicoterapeuta psicanalítico, sublinha que os bloqueios são processos individuais que devem ser analisados num contexto específico. O clínico compara os bloqueios com o acordar de um sonho. “Um objecto artístico é como um sonho em que projectamos as nossas questões internas e as colocamos em tudo o que fazemos. Sonhamos uma história, mas por vezes não a conseguimos resolver e acordamos e aí é um sonho falhado, que não foi sonhado até ao fim”, explica.

Pensar ao contrário

A criatividade também faz parte do dia-a-dia de André Rabaneá, o fundador e director da TORKE, a primeira agência de marketing de guerrilha a surgir em Portugal, em 2005. Se por um lado tem imensas ideias por dia – sobretudo quando está na casa-de-banho sempre com um caderninho ao lado ou enquanto toma banho -, por outro também está habituado a que “muitas vezes” a criatividade lhe pregue partidas.

Quando isso acontece, tem alguns truques que costumam resultar. “’Rezar’ para outro colega ter tido uma ideia, ou dar uma volta, procurar outras fontes de inspiração”, revela numa entrevista por e-mail. “Não adianta estar com a cabeça noutro lugar nem fumar porque, com esta técnica, apenas pensamos que tivemos uma ideia boa, mas no dia seguinte percebemos que, afinal, era bem fraquinha”, acrescenta o brasileiro que vive constantemente entre o Rio de Janeiro, Lisboa e Istambul, onde a empresa está representada.

Para André Rabaneá, os maiores bloqueios surgem quando o briefing – a primeira descrição do projecto – parece demasiado simples. “É tão fácil, tão fácil pensar numa ideia que o nosso cérebro entra em ciclos e não sai nada de novo.” Quando todos têm a mesma ideia, a sintonia depressa vira bloqueio. “Se toda a gente teve a mesma ideia, quer dizer que não é a melhor. Que qualquer um poderia ter pensado nisso e isso para nós é um bloqueio também”, explica.

Todos os anos, na época natalícia, a TORKE desenvolve um projecto para se diferenciar das outras empresas. No entanto, houve um Natal, em 2007, em que a equipa teve “um bloqueio total”. “Tivemos umas 50 ideias de Natal de todas as maneiras, mas nenhuma nos fazia vibrar nem tinha humor suficiente.” Quando já tinham desistido, porém, a ideia acabou por surgir.

Falava-se na maior árvore de Natal que, nesse ano, ia ser instalada no Porto e André virou o conceito ao contrário e salvou o dia. “Liguei para a equipa e disse: ‘Pessoal, já temos a ideia. Lisboa precisa de um evento à altura da maior árvore de Natal. Temos que bater recordes, temos que brincar com o gigantismo das coisas para aparecer nas notícias.’ Criámos a menor árvore de Natal do mundo e fizemos o lançamento na Praça do Comércio, ao mesmo tempo que a maior era lançada no Porto”, recorda.

O luto de cada projecto

Noutra arte, Pedro Amaral começa por dizer que nunca se sentiu bloqueado. Pára por um instante e confessa que “talvez o início [das obras] seja o mais difícil”. Tem 40 anos e é compositor e maestro. Compôs várias peças musicais, entre elas uma ópera – O Sonho – em 2010. “Assim como um arquitecto que tem de imaginar um edifício e ter uma ideia global de como a obra vai ficar olhando apenas para o local - e depois demora meses e meses a construir um projecto -, com os músicos acontece o mesmo. É um trabalho de rigor a partir de um momento de intuição”, afirma. Depois de rompido o silêncio, o que surge “pode não ser uma melodia, pode ser um grupo de instrumentos, pode ser só uma nota ou um acorde”.

Tal como Mónica Calle, Pedro Amaral sente que quanto maior for um projecto, mais as ideias se esgotam no final. “É uma sensação de esterilidade, porque durante um trabalho cavamos um poço a partir do desconhecido e ele vai aparecendo e quando chegamos ao fim é difícil. Quando se começa de novo há também um momento de fragilidade porque estamos novamente a caminhar no desconhecido.”

Carlos Ferraz concorda com esta ideia. O clínico considera que os bloqueios estão associados a inquietações interiores, pelo que “quanto mais difícil e exigente for a temática de um projecto, maior é a probabilidade de se desencadearem bloqueios”.

O maestro confessa que depois de ter composto a ópera – a que, num rasgo criativo, cerca de dois anos depois de a ter iniciado, alterou o arranque - se sentiu “estúpido” criativamente durante algum tempo. “Senti um vazio imenso. Era incapaz de produzir de uma forma produtiva, não saía nada”, explica à medida que a conversa se desenrola e o obriga a reflectir mais sobre o assunto.

No fim de cada obra, mergulha num período de luto, à espera de sentir necessidade de um novo projecto. “É um luto doloroso. Acabo com uma barra dupla e quero sempre melhorar. Para uma pessoa que não tem um prazo definido é difícil, queremos sempre melhorar”, afirma.

Ideias abandonadas

Joaquim Sapinho, realizador de cinema, encontra bloqueios nas conexões dos vários caminhos que levam à criação de um filme, que surge “quase como uma profecia que se consegue cumprir ou não”. “Pode haver dois tipos de bloqueios: um pela mudança de ritmo e outro por insistir num determinado caminho e é muito difícil escolher entre os dois, explica Joaquim que, nos últimos anos, assinou a realização de Corte de Cabelo (1995), Diários da Bósnia (2005) e Deste Lado da Ressurreição (2011). Acrescenta o exemplo de Marcel Proust que deitou 600 páginas do romance A la recherche du temps perdu para o lixo.

Num processo de edição, também Joaquim teve de deitar cerca de 30 minutos do Deste Lado da Ressurreição fora, porque se estava a desviar da essência do filme que se concentra na história de dois irmãos. “Havia uma personagem que era muito mais desenvolvida e o filme tinha para aí mais meia hora e eu tive de deitar isso tudo fora, pois tudo o que fica a mais no filme e apaga o mistério é prejudicial”, recorda. “Não se faz de ânimo leve, é muito doloroso, mas é essencial”, acrescenta.

Para o realizador, que filma a partir de inquietações, os bloqueios são vividos interiormente. “Tudo é vivido em função do cinema e, com dedicação o filme, vai indo ao sítio”.

Quando filme não vai ao sítio, “é o terror”, diz, rindo-se, mas, recuperando um tom de voz mais sério, afirma de seguida: “Por isso é que se filma todos os dias às 7h da manhã. [O cinema] é, ao mesmo tempo, uma felicidade e uma maldição para encontrar expressão.”

Notícia corrigida às 16h58

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