Prémio Miguel Portas para associação que faz mapas dos sons das aldeias

A Binaural – Associação Cultural de Nodar, de São Pedro do Sul, vai usar os 10 mil euros do prémio para reforçar o arquivo das memórias das zonas rurais. Há uma década que está em campo e o território continua a ser a sua matéria-prima.

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Tiago Carvalho recolhendo sons no Festival Paivascapes #1 Paulo Ricca
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O Paivascapes #1 – Festival Sonoro do Paiva Paulo Ricca

Nasceu há 10 anos para explorar artisticamente as zonas rurais, sobretudo no domínio da arte sonora experimental cruzando-a com outras expressões, como a arquitectura ou a arqueologia, e tem feito do território a matéria-prima de um trabalho demorado, contínuo e intenso. Instalou-se em Nodar, uma pequena aldeia de S. Pedro do Sul, e resgatou-a para o seu nome.

Com uma década de trabalho, a Binaural/Nodar, colectivo artístico, associação sem fins lucrativos, ganhou a primeira edição do Prémio Miguel Portas 2013 subordinado ao tema As Margens e as Pontes uma distinção promovida por um grupo de amigos e familiares do fundador do Bloco de Esquerda (BE), desaparecido em 2012 e que faria 56 anos neste 1 de Maio.

O prémio de 10 mil euros foi entregue nesta quarta-feira, na livraria Ler Devagar, na LX Factory, em Lisboa. Na primeira edição do prémio, que quer distinguir iniciativas sociais, destacando reflexões práticas sociais e culturais em torno de questões europeias, candidataram-se cerca de 60 projectos. Dois receberam menções honrosas: os projectos Buala e Mouraria Light Walk.

O prémio chega a Nodar numa data redonda, dez anos de vida, e é atribuído por um júri presidido por Nuno Portas, composto por Clara Ferreira Alves, Augusto M. Seabra, João Fernandes, Miguel Vale de Almeida, Isabel Allegro, Cláudio Torres, Maria do Carmo Bica, Ana Drago, António Costa e José Manuel Pureza.

A decisão foi unânime e o júri salienta “a qualidade, o rigor e a exigência da experimentação de novas linguagens artísticas com um contexto do interior do país, esquecido pelos roteiros habituais das manifestações culturais em Portugal”.

Coube a Augusto M. Seabra justificar a decisão na sessão da Ler Devagar. Começou por lembrar que Miguel Portas era “alguém intensamente cosmopolita, sabendo que o cosmopolitismo começa em nós, ao sabermos ter mundo, e descobrir o mundo em volta”.

O crítico (e colaborador do PÚBLICO) disse serem também estas as características do projecto vencedor. “Ignorado pelos grandes centros de criação de discurso em Portugal, mas com repercussões em cidades, de Londres a Boston”.

“Há prémios que honram os premiados e há prémios em que são os premiados que honram os júris”, acrescentou Seabra, referindo ser uma grande honra atribuir o Prémio Miguel Portas à associação Binaural.

Também membro do júri, João Fernandes, sub-director do Museu Rainha Sofia, em Madrid (e ex-director artístico do Museu de Serralves, no Porto), disse que recordar Miguel Portas será sempre “uma celebração das possibilidades de transformação da vida nas suas pequenas e grandes revoluções, nos projectos que, mais ou menos visíveis, traduzem essa extraordinária capacidade de agir em comum, de construir o comum, com as quais Miguel Portas juntava pessoas a partir do entendimento das diferenças”.

A sessão na Livraria Ler Devagar teve lotação esgotada, e a ela compareceram muitas figuras históricas do BE, como Francisco Louçã e Daniel Oliveira.  

Sentido de invisibilidade
O prémio sabe bem. “É o reconhecimento de um interesse que, a pouco e pouco, vai acontecendo em relação às nossas actividades. Há um sentido de invisibilidade no nosso trabalho, porque é um trabalho contínuo, de laboratório, e não de festival”, disse ao PÚBLICO Luís Costa, presidente da Binaural. “Seguimos a paisagem, seguimos a cultura. A nossa matéria de trabalho está ligada ao território. E a criação artística também tem esse poder de despertar percepções de futuros possíveis”, acrescentou. 

Os 10 mil euros do prémio vão ser aplicados no que a Binaural sabe fazer. “Vamos reforçar a componente de documentação antropológica sobre o território, nesse arquivo de memórias das zonas rurais focado nos aspectos de transformação social das aldeias, falando com as pessoas que lá vivem, com os emigrantes, na procura de futuros possíveis”, revelou.

Luís Costa sabe a importância das margens e das pontes no trabalho que desenvolve diariamente em territórios essencialmente rurais. Há cinco anos, nasceu o projecto Aldeias Sonoras para juntar crianças e jovens de várias localidades rurais a captarem sons que se escutavam nessas terras. Neste momento, o projecto que cresceu para Cidades Sonoras, está a ser realizado em S. Pedro do Sul com o mesmo conceito. E quando há um rio que é o protagonista de residências artísticas, como aconteceu há três anos no Paivascapes #1 – Festival Sonoro do Paiva, que juntou vários artistas da Europa, América e Ásia, e que o PÚBLICO acompanhou, há pontes que se lançaram em vários territórios, por onde o rio passa.

Nas margens do Paiva, um dos rios mais limpos da Europa, registaram-se sons para que fossem escutados e sentidos como vieram ao mundo. Há também pontes que se constroem com artistas portugueses e estrangeiros que se instalam em Nodar para reflectirem e trabalharem artisticamente no território.

Em Outubro, começará um novo programa de residências artísticas em Nodar com o tema Mobilidade rural que englobará várias áreas, como a emigração, a transumância, vendas ambulantes, peregrinações.

Desde 2006, Nodar já albergou mais de 120 artistas e os que chegam de fora vêm sobretudo de Espanha, França, Itália, Estados Unidos, Canadá e do norte da Europa. Há, no entanto, uma ponte complicada ao longo do percurso. “O mais difícil tem sido o diálogo de proximidade, nomeadamente a nível municipal. O que, para nós, acaba por ser um desafio”.

O presidente da Binaural assume que a associação não tem uma estratégia de comunicação muito agressiva e talvez, por isso, não esteja “no radar das atenções”. As notícias acabam por surgir naturalmente das iniciativas que o colectivo tem desenvolvido. “Estamos mais interessados em estar nos territórios, em viver com as pessoas, em perceber questões que são fundamentais para as comunidades”.

Embora centrada nas zonas rurais, a Binaural tem estado receptiva a trabalhar em cidades. “Temos uma metodologia de trabalho e temos muita vontade de a partilhar”, garante o responsável. Neste momento, por exemplo, Luís Costa está a desenvolver um projecto, uma co-produção com o Teatro Viriato, que junta jovens das paróquias de Viseu a tocar uma composição, a partir de uma partitura gráfica, em sete sinos de sete igrejas e capelas em simultâneo. A Cidade de Mateus: Uma Campanologia Viseense é o nome do projecto que será apresentado a 31 de Maio pelas 20h30, no âmbito do Festival Viseu A….

Para esse mesmo festival, a Binaural está também a criar uma performance/instalação que envolve actores amadores das aldeias do maciço da Gralheira, em São Pedro do Sul. Macário é o nome deste trabalho baseado na lenda popular de São Macário e nas reflexões de José Almeida, octogenário, escultor e pedreiro da aldeia de Macieira e devoto do santo.

Relativamente à sobrevivência, a Binaural conta com o apoio da Direcção-Geral das Artes, de candidaturas que apresenta a projectos europeus e cada vez mais das receitas próprias que surgem com os workshops, projectos educativos e publicações.

“Coisas raras, coisas estranhas”
Nuno Portas, presidente do júri do Prémio Miguel Portas, está satisfeito com o resultado. Cerca de 60 propostas, 20 das quais bastante interessantes e que foram analisados à lupa. “São coisas um pouco raras, um pouco estranhas, que, no fundo, andam à volta das diferenças nas várias geografias, e é isso que é interessante”, refere ao PÚBLICO. O tema escolhido não foi por acaso: As Margens e as Pontes. “O Miguel jogava muito nas fronteiras. Acho que cumprimos o que o Miguel nos pediu”. E quanto ao vencedor, Nuno Portas classifica-o como “um trabalho que basicamente é musical, não é político”. 

Neste momento, não é certo que o Prémio Miguel Portas seja anual. “A ideia é que seja regular, mas não sabemos se teremos meios para que seja anual. E, nesta altura, é difícil fazer promessas”. Na estreia, o apoio substancial para o prémio veio da Fundação Gulbenkian.

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