Picasso volta a ser expulso do seu estúdio de Paris

Tribunal decidiu que associação que ocupa atelier histórico do pintor andaluz em Paris tem de sair até sexta-feira. Picasso viveu e trabalhou lá quase 20 anos. Agradava-lhe que a imaginação de Balzac tivesse andado por ali.

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Picasso no atelier da Rue des Grands Augustins, pintando Guernica Dora Maar/Cortesia Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia

Na fachada do n.º 7 da Rue des Grands Augustins uma placa discreta denuncia a singularidade do lugar: “Pablo Picasso viveu neste edifício entre 1936 e 1955. Aqui pintou Guernica, em 1937.” Por baixo, a indicação de que o escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850) situa ali a acção de um dos seus contos, A Obra-Prima Ignorada. É um daqueles palacetes carregados de histórias e de personagens que fazem parte da memória dos séculos e de uma certa maneira de ver Paris como cidade de boémia e de artistas, onde acontecem coisas especiais.

Bastaria Guernica, uma das pinturas mais icónicas de sempre, ter nascido naquele velho prédio que agora é objecto de polémica para que valesse a pena inscrevê-lo nos roteiros da cidade.

Segundo uma ordem do tribunal a que os jornais Le Monde, Libération e El País fazem referência, a associação que nos últimos dez anos tem garantido a integridade do atelier do pintor de Málaga, sem pagar qualquer tipo de renda, tem até sexta-feira para o deixar vago.

A decisão judicial vem na sequência de um processo entreposto pela proprietária, a Câmara dos Oficiais de Justiça de Paris (funcionários dos tribunais encarregues de, por exemplo, executar penhoras) contra a referida organização privada de divulgação artística, o Comité Nacional para a Educação Artística (CNEA).

Em 2002 as duas entidades celebraram um acordo de mecenato que permitia à associação ocupar gratuitamente o estúdio - onde entretanto diz ter organizado qualquer coisa como 700 concertos, exposições e ateliers pedagógicos -, tendo como única obrigação a reforma do espaço. O problema, alegam os representantes dos oficiais de justiça, é que esse acordo expirou em 2010 sem que o CNEA abandonasse as instalações.

“Estava abandonado e nós renovámo-lo inteiramente, respeitando o seu aspecto original”, disse Alain Casabona, o principal responsável pelo CNEA, citado pelo diário espanhol El País. As grossas vigas de madeira do tecto foram mantidas, assim como o gancho onde Picasso acreditava ter sido torturado Ravaillac, o homem que matou o rei Henrique IV, no começo do século XVII. O quarto do pintor, hoje transformado em escritório, ainda conserva o sofá original e esconde muitos tesouros, como desenhos originais e a bandeira de França que o escritor norte-americano Ernest Hemingway lhe trouxe das barricadas no dia da libertação de Paris, em Agosto de 1944.

“O atelier não está em perigo”, assegurou Alexandra Romano, do serviço de comunicação da Câmara dos Oficiais de Justiça. “A vida da associação não tem nada a ver com a do estúdio.” Para os proprietários, é necessário fazer obras em todo o edifício e, com a actual situação económica, não se justifica continuar a ceder gratuitamente um espaço de 250 m2 a uma associação privada. “Não podemos permitir-nos manter este mecenato”, explicou Romano. “Há anos que são ‘ocupas’. Têm de sair.”

Segundo o diário francês Libération, a acção para expulsar a associação do atelier foi entreposta num tribunal parisiense em Junho e a resposta foi pronta. Em 2009, um ano antes de findar o acordo de mecenato, a proprietária enviara uma carta ao CNEA alertando para a proximidade da data.

Há rumores de que, depois de vendido, o edifício será transformado num hotel de luxo. “Ainda há que avaliar”, disse Casabona ao diário francês Libération a 20 de Junho, sem adiantar nomes: “Encontrámos um potencial interessado no imóvel, prestigiado”, acrescentou, “e que é herdeiro directo da família Picasso”. Segundo o responsável da associação, as negociações entre a Câmara dos Oficiais de Justiça e este familiar que estaria disposto a a arrendar todo o edifício e a manter o CNEA no sótão, estão ainda a decorrer, mas até agora nada se sabe.

Preocupado com a manutenção do atelier do pintor, o CNEA, associação privada que existe há já meio século, criou uma comissão para organizar uma campanha de apoio à sua salvaguarda e pôs à frente deste grupo de pressão um amigo de Picasso, o fotógrafo Lucien Clergue. Esta comissão elegeu como principal objectivo a classificação do atelier como património, a que se juntou depois o pedido do autarca do VI bairro de Paris (onde fica a Rue des Grands Augustins), Jean-Pierre Lecoq, para que seja inscrito nos roteiros culturais como “lugar de memória”.

Apoiado por um naipe de personalidades de várias áreas, como a actriz Charlotte Rampling, o violinista Didier Lockwood e o histórico presidente da Comissão Europeia Jacques Delors, Clergue escreveu ao Presidente francês, François Hollande, solicitando-lhe que se ocupasse do assunto com urgência. Lecoque enviou uma carta à ministra da Cultura, Aurélie Filipetti. Hollande, por sua vez, já reencaminhou o pedido feito pelo CNEA para Filipetti e espera que a ministra seja rápida a resolver a situação. Esperam-se novidades nos próximos dias.


Uma casa com muitas visitas

Picasso (1881-1973) chegou ao sótão do palacete em 1936, no seu exílio parisiense, por recomendação do actor e encenador Jean-Louis Barrault, que acabara de o deixar vago e que, mais tarde, viria a referir-se ao estúdio, intensamente frequentado pelos surrealistas, como uma “república ideal”.

O facto de Balzac ter escolhido o edifício como cenário para a sua comédia A Obra-Prima Ignorada acabou por convencer o artista a ficar – o mestre catalão era seu admirador – e o título do conto em causa permitiu ao célebre fotógrafo Brassaï brincar com as palavras no seu livro Conversations avec Picasso (1965). “Assim, no lugar da obra-prima desconhecida [ou ignorada, na tradução em português], Picasso pintaria a obra-prima bem conhecida”, escreveu, referindo-se a Guernica, que hoje faz parte da colecção do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, em Madrid.

Picasso conservaria o estúdio durante 19 anos, até de lá ser expulso à pressa, em 1955, para que o edifício tivesse outros usos (escola da câmara dos oficiais, com o sótão a servir de mera arrecadação).

Durante esse período de intensa actividade artística e de uma vida familiar tranquila (pelo menos nos dez anos em que lá viveu a jovem pintora Françoise Gilot, mãe dos seus filhos Claude e Paloma), o velho atelier era lugar de tertúlia e de criação. Artistas, filósofos e escritores como Jean Cocteau, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Valentine Hugo e Albert Camus eram visitas regulares.

Brassaï (1889-1984) fotografou-o naquele estúdio muitas vezes e admitia que o amigo se tinha apaixonado por aquele lugar à primeira vista. Dora Maar, que viria a ser sua amante, registou intensamente os 33 dias que Picasso demorou a pintar Guernica, uma encomenda republicana para o pavilhão espanhol da Feira Internacional das Artes e das Técnicas da Vida Moderna de Paris, em 1937. A obra, hoje um símbolo que evoca os horrores da guerra, foi inspirada no bombardeamento alemão da pequena cidade basca de Guernica – era dia de mercado e o ataque dos aviões da Legião Condor deixou o povoado em ruínas e centenas de mortos.

O velho estúdio está ligado a esta e a outras memórias do mestre de Málaga. Brassaï acreditava que por lá também andava o fantasma de Balzac.

Notícia corrigida às 23h10: Picasso nasceu na Andaluzia e não na Catalunha.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 
 
 
 
 

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