Os pensamentos que Agustina esquecia pelas gavetas da casa

Caderno de Significados, lançado pela Babel, reúne perto de uma centena de textos inéditos de Agustina, escritos ao longo de quase 50 anos.

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A organização do livro coube ao marido da romancista, Alberto Luís, e à sua neta Lourença Baldaque Adriano Miranda

Recentemente lançado pela Babel na colecção Contemplações, "Caderno de Significados" reúne cerca de noventa pequenos textos de Agustina Bessa Luís, a maior parte deles inéditos, encontrados entre os seus papéis, esquecidos nas gavetas da casa, sepultados entre páginas de livros. A organização do livro coube ao marido da romancista, Alberto Luís, e à sua neta Lourença Baldaque, que entretanto encontraram já material suficiente para mais um volume semelhante.

São textos de natureza muito diversa: reflexões sobre a sua própria obra e a de outros escritores, apontamentos diarísticos, retratos de terceiros, observações sobre Portugal e os portugueses, notas políticas. A haver uma palavra que os aglutine, a menos inadequada talvez seja “comentários”. Às vezes quase ensaísticos, outras vezes sibilinos, mas quase sempre surpreendentes.

Os organizadores do volume escolheram o título em homenagem aos velhos “cadernos de significados” que a pequena Agustina usava no colégio – alguns deles ainda se conservam entre os seus papéis –, mas também porque a romancista “foi sempre impulsionada pela vontade de procurar o sentido das coisas”.

Depois de Kafkiana, um conjunto de quatro ensaios sobre Franz Kafka, e do conto Cividade, este Caderno de Significados é já o terceiro volume de inéditos de Agustina Bessa Luís que sai nesta colecção da Babel. A  escritora sofreu um acidente vascular cerebral pouco depois de ter publicado o romance A Ronda da Noite, em 2006, e a família tem vindo a organizar e divulgar o seu arquivo. 

“A minha avó sempre teve esse hábito de escrever alguma coisa e depois guardar o papel num canto qualquer, não era nada organizada”, diz a sua neta, a escritora Lourença Baldaque, acrescentando que ainda há dias encontrou novos textos. “Ficou material para um eventual segundo Caderno de Significados”, garante Lourença, que está agora a trabalhar na edição da correspondência da avó com José Régio, que deverá ser publicada em 2015. “Abrange um período que vai de 1955 a 1968 e é uma correspondência entre dois amigos que tinham admiração um pelo outro, não há grande formalidade”, diz a neta de Agustina.

A carta a Khomeiny
Lourença e o avô decidiram ordenar os textos deste Caderno de Significados por ordem alfabética dos títulos, sendo que alguns são da própria Agustina, mas muitos foram acrescentados pelo seu marido e são apenas, diz Lourença Baldaque, “uma descrição do tema de cada texto”. Dos textos aqui reunidos, o que mais naturalmente serviria de prólogo ao livro é o que se intitula Nascer Escritora, que fecha com esta confissão: “Vejo um papel em branco e apetece-me escrever. Muitas vezes sinto isso até quando vejo a folha de rosto dos livros, com muito espaço em branco”. A filha de Agustina, Mónica Baldaque, garante que o apontamento é literalmente verdadeiro. “Já os seus cadernos escolares, de quando era muito pequena, estão completamente preenchidos, não há espaços em branco”.

Mónica Baldaque confessa que “ao reler agora o livro”, sente que está “um bocadinho a devassar o dia a dia” da mãe. Uma afirmação que seria natural se esta fosse uma compilação de apontamentos íntimos e autobiográficos, mas que resulta surpreendente depois de lermos estes textos escritos quase sempre com evidentes preocupações literárias, num registo muitas vezes irónico, e que tratam de temas como, por exemplo, o papel que a líbido do infante D. Henrique desempenhou na criação da Escola de Sagres.

No entanto, a sensação de Mónica Baldaque é justificada. O registo doméstico de Agustina é que era estranho. “A minha mãe falava mesmo assim em casa, foi com isto que eu vivi toda a vida”, garante a filha da romancista.

Alguns dos textos pediriam, em futuras edições, alguma informação suplementar, como a surpreendente carta de Agustina ao ayatollah Khomeiny, a lamentar a fatwa promulgada contra o escritor Salman Rushdie. O registo epistolar do texto pode ser entendido como um expediente retórico, mas Mónica Baldaque conta que a carta, traduzida para inglês, foi mesmo enviada a Khomeiny por vias diplomáticas. 

Dois riscos do escritor
Os textos são naturalmente desiguais, e decerto que a autora não os teria publicado exactamente assim, mas em quase todos eles aparece uma dessas tiradas aforísticas que só Agustina poderia ter escrito. Podemos, por exemplo, torcer o nariz à aparente banalidade da sua crítica a Os Lusíadas, nos quais vê uma narrativa “pomposa e, no geral, fria” – Camões, sugere, ter-se-ia preocupado mais em agradar ao rei do que em ser fiel à verdade histórica –, mas depois atordoa-nos com a inesperada tirada final: “não se deve exagerar em ser verdadeiro, excepto se nisso houver algo de inimitável”.

Muitos destes textos são sobre a sua própria obra e a condição de escritora. “Comecei a considerar-me uma grande escritora desde os doze anos. Porque isso ou é muito cedo ou nunca é”. Noutro texto defende que o escritor deve precaver-se do risco de se converter “num mercado de bugigangas, com muitas coisas brilhantes que apregoar e poucas valiosas que oferecer”, mas avisa que “também não é bom ser austero de mais, nem culto, que pareça solidão fingida”.

Outros textos são retratos, por vez em tom de homenagem, tanto quanto um texto de Agustina pode sê-lo, outros nem por isso. Trata bem Marguerite Yourcenar, Simone de Beauvoir, Maria Callas, mas diz que “os três dias de luto impostos ao país” pela morte de Amália “não se justificavam”.

Algumas das suas opiniões são francamente heréticas, como a de afirmar que o S. João, vendido como a festa popular e interclassista por excelência, “foi sempre uma festa de elites”. Outras são provocatórias e inesperadas, como a de dizer que “os portugueses não gostam de teatro porque consideram o teatro um atentado à vida privada”, ou que o Teatro Nacional D. Maria II, que dirigiu no início dos anos 90, “é como um certo banco de que se dizia que tinha muita fachada e poucos fundos”.

Nas notas mais políticas, encontram-se frases como esta, escrita em 1980, a escassos seis anos do 25 de Abril, e à qual é difícil negar actualidade: “A democracia acaba em fachada sonsa de uma pequena festa oligárquica”. Ou esta: “Não se fazem nações livres com pessoas infelizes”. Ou esta, de 1999: “Tenho medo dum continente bem-educado, dum Portugal em surdina. Acho que devemos falar alto quando é preciso (…)”.

Por feliz arbitrariedade alfabética, o livro acaba com uma homenagem ao pensador judeu Uriel da Costa, esse seu irmão livre-pensador, “moço filósofo e discordante doutra doutrina que não fosse a da compaixão”.

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