"Os festivais de música deixaram de ser contraculturais, são a cultura"

Martin Elbourne, antigo manager de New Order e agente dos Smiths, co-criador do primeiro WOMAD e do festival de Glastonbury, tira o retrato à evolução dos festivais de música nos últimos trinta anos

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O maior festival de música do Reino Unido, é o Glastonbury AFP PHOTO/Leon Neal

“No Reino Unido é difícil encontrar alguém abaixo dos 50 anos que não tenha ido a um festival [de música]”, garante Martin Elbourne, um dos oradores convidados a participar numa das conferências da terceira edição do Talkfest, o fórum sobre o futuro dos festivais de música em Portugal que termina sábado à noite com concertos de DJ Ride, Octa Push, Brass Wires Orchestra e Los Waves na Aula Magna, em Lisboa. A realidade britânica de Elbourne, certamente que de forma menos esmagadora, não deverá ser tremendamente distante da portuguesa. Os festivais são hoje indissociáveis da forma como nos relacionamos com a música.

Há muito, muito tempo, um tempo difícil de recordar com nitidez, os festivais de música eram uma excepcionalidade, um acontecimento raro e vivido como tal. Há muito, muito tempo, os festivais de música eram um acontecimento contracultural: o local em que uma geração moldada em grande parte pela música que ouvia se reunia para celebrar essa diferença— público e bandas unidos pela mesma consciência de si. Há muito, muito tempo são os anos 1960 e início de 1970, os do Monterey Pop Festival ou de Woodstock, nos Estados Unidos, do Isle Of Wight, em Inglaterra, e de muitos mais que, inspirados por essas manifestações, começaram a nascer por todo o lado (incluindo por cá: Vilar de Mouros 1971, o Woodstock português).

Esse tempo não é o tempo de Martin Elbourne. Hoje responsável pela programação do The Other Stage e do Palco John Peel, os palcos indie do maior festival do Reino Unido, o Glastonbury, intimamente ligado ao nascimento do Great Escape, em Brighton, mostruário de novo talento que ocupa dezenas de salas da cidade costeira inglesa, e colaborador activo em vários outros, do Canadá à Índia, Elbourne assistiu de perto e enquanto participante à evolução dos festivais de música nas últimas três décadas, aquelas em que, como afirma, estes “deixaram de ser contraculturais” para passarem a ser “parte da cultura”.

Em 1982, quando juntamente com Peter Gabriel montou em Shepton Mallet o primeiro WOMAD, que se tornaria como que modelo para os festivais por vir de world music, era um jovem “incrivelmente ingénuo” que criou um evento em que, além da música, seria celebrada a cultura global através, por exemplo, da gastronomia. Estando assente que o WOMAD teria que ter uma componente pedagógica relevante, não cobrou entrada ao público jovem. “Custou-nos uma porrada de dinheiro”, diz a sorrir numa sala do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), em Lisboa, onde decorreu o Talkfest iniciado dia 13 e que encerra este sábado com os concertos na Aula Magna.


Depois dessa primeira experiência na montagem de um festival, Martin Elbourne foi muitas coisas. Começara por organizar concertos na sua faculdade, em Bristol, quando o punk explodiu. Depois fundou uma pequena editora e começou a publicar uma revista, antes de se mudar para Londres. Aí, trabalhou na Rough Trade, empresa ícone da música indie britânica original. Entre as bandas do seu catálogo estavam os Smiths e Elbourne acabaria por conduzi-los em 1984 a Michael Eavis, o agricultor que fundou o festival de Glastonbury na década de 1970.

“Foi a primeira vez que tiveram uma banda em cartaz que era número 1 no Reino Unido. Antes tinham músicos como o Van Morrison, artistas mais alinhados com a geração hippie”. Eavis manteve-o por perto. Pedia-lhe aconselhamento para a contratação de bandas, a troco de uma pequena quantia e de todos os bilhetes para o festival que Elbourne, ao mesmo tempo manager dos New Order, quisesse pedir. Entretanto, o agenciamento de bandas foi sendo posto de lado, à medida que se foi estreitando a relação com Glastonbury —entrou para a lenda a escolha dos Oasis para o cartaz, motivado pela audição de uma simples maqueta, quando os irmãos Gallagher eram uns meros desconhecidos de Manchester.


Nessa altura, em 1994, iniciava-se o caminho decisivo para a profissionalização dos festivais – em Portugal, por exemplo, faltava um ano para a realização daquele que seria, chamemos-lhe assim, o primeiro evento da era moderna dos festivais musicais portugueses, o Super Bock Super Rock na Gare Marítima de Alcântara. Vinte anos depois, tudo mudou. Multiplicou-se o número de festivais e multiplicaram-se as formas que assumem: existem desde acontecimentos para grandes massas de público a festivais destinados a um público específico, quer seja o afecto ao blues ou à world music, quer seja realizado em espaço urbano ou rural, quer se destine a um público mais velho, já sem a energia e a paciência de outrora, ou a um público jovem e ávido por ver em palco os nomes que descobriu o mês passado na internet.


Com a crise da indústria discográfica e a quebra de rendimentos das vendas de discos, os festivais  tornaram-se indispensáveis para as bandas. O público, por sua vez, não os dispensa na sua rotina de fruição musical. “Antes, os músicos podiam dispensá-los”, afirma Martin Elbourne. “Hoje em dia, se quiserem ter uma carreira, não o podem fazer. Têm que passar pelos festivais, particularmente pela Europa”. Mas não só. “O panorama alargou-se”. Depois do leste europeu, formou-se um circuito na América do Sul e a Oriente. “Existe agora uma nova época de festivais, com início em Outubro”, aponta Elbourne.


Com o passar dos anos, aumentou a profissionalização, melhoraram as condições técnicas e as condições para quem assiste. Perdeu-se uma certa inocência e a tal aura comunitária contracultural. “Nos velhos tempos havia festas com fogueiras noite fora em Glastonbury e era maravilhoso, mas agora, por questões de segurança, já não é possível”. Tantas mudanças depois, porém, há algo que se mantém inalterável.

Apesar da invasão publicitária, essencial para assegurar o financiamento (dado o aumento da concorrência entre festivais, “os cachets para as bandas principais continuam a subir”, assegura Elbourne), apesar de a aura de momento único e irrepetível ter sido substituída por uma relação de familiaridade, continua a ser a música o principal factor a chamar o público.

É o que diz um estudo realizado pelo Talkfest e divulgado esta sexta-feira. Segundo ele, 48% do público português escolhe a ida a um festival pelo cartaz que apresenta. E já agora, o perfil do “festivaleiro” diz que este é maioritariamente feminino (57%), solteiro (88%), licenciado (48%), com uma idade entre os 17 e os 30 anos (80%) e com um rendimento médio mensal até mil euros (45%).

Para Martin Elbourne, apesar de todas as mudanças a que assistiu desde que perdeu “uma porrada de dinheiro” no primeiro WOMAD, o prazer e o espanto que lhe provoca a ida a um festival “tem sempre a ver, no fim de contas, com o cenário e a música”. Segundo ele, tal não mudará nos próximos tempos.

Tal como não mudará a nossa relação e interesse pelos festivais de música enquanto acontecimento. A razão para tal é muito simples. A óbvia: “Actualmente, já fazem parte da nossa cultura. E não penso que isso se altere nos tempos mais próximos”.

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