O tapete no gabinete de Merkel, o relógio de Eva Braun e o problema da gestão das peças dos nazis

Investigação da revista Der Spiegel denuncia incapacidade de museus e governos alemães na gestão dos bens dos líderes nazis e dos resultados das suas pilhagens.

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Hitler observa algumas pinturas, numa fotografia sem data e num local não identificado AFP

O tapete que está na Chancelaria alemã, no gabinete de Angela Merkel, pertenceu a Hermann Göring, fundador da Gestapo e líder da Luftwaffe? E há também um relógio-jóia oferecido por Adolf Hitler a Eva Braun nos arquivos do museu de arte moderna de Munique. Estes são apenas exemplos de “um legado venenoso” que permanece nas instituições públicas alemãs, segundo uma investigação da revista Der Spiegel, que denuncia a incapacidade de museus e governos da Alemanha em lidar com o problema dos bens dos líderes do regime nazi e com o resultado das suas pilhagens.

Tudo começa com um relógio de pulso de platina com diamantes, o item 471/96, que é acompanhado pela inscrição “A 6 de Fevereiro de 1939. Com todo o meu coração, A. Hitler”. Do relógio dos 27 anos de Eva Braun, a companheira do ditador Adolf, podemos ir até à cigarreira de ouro também cravejada de diamantes que pertencia a Hermann Göring, ou aos talheres com o monograma de Hitler. Jóias de uma época cuja memória ainda não é fácil de enquadrar pelos historiadores e museus alemães e que a Der Spiegel foi encontrar na Pinakothek der Moderne, museu de arte moderna de Munique – não expostas, armazenadas.

Segundo o tema de capa da última edição de Janeiro da revista alemã, os museus do país guardam ainda tesouros de uma era, a nazi, que os poderes políticos subsequentes decidiram manter longe da vista. “Ainda hoje, esta continua ser a forma preferida de a Alemanha lidar com os tesouros que Hitler, Göring e todos os outros líderes nazis surripiaram e roubaram a terceiros durante 12 anos de tirania”, escreve a publicação.

A origem destas peças é uma das fontes do silêncio dos governos alemães ao longo das décadas. Muitas das cerca de 20 mil peças que hoje são propriedade do Governo alemão, entre jóias, pinturas, tapeçarias, esculturas e livros, foram roubadas aos seus proprietários originais (particulares ou instituições museológicas, sobretudo na Europa de Leste) ou são fruto do medo sobre a comunidade judaica que a fez vender as suas colecções ao desbarato. E os governos alemães posteriores pouco fizeram para identificar a origem, por exemplo, das peças que constituíam as milionárias colecções de arte de Hitler ou de outros cabecilhas do regime nazi.

Em 2008, nasceu um grupo de trabalho para investigar e fazer o estudo da proveniência das peças ainda não-reclamadas do legado judeu, um organismo com quatro trabalhadores que apenas 84 projectos de investigação nos museus e bibliotecas alemães, num universo de 6300 museus no país.

E num silêncio envergonhado, ao longo das décadas a negra herança dos saques nazis perpetuou-se. Primeiro, as peças pilhadas entre 1939 e 1945, resgatadas pelos Aliados logo em 1945, foram concentradas pelos norte-americanos em Munique e em Wiesbaden, nos chamados Central Collecting Points (CCP). Depois de 1948, os americanos passaram a responsabilidade por essas peças ao governador da Baviera, que depois a passaria ao Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, que funcionava em Bona, onde foi criada uma comissão de restituição que previa regularizar a situação desses bens e dos seus proprietários – ou junto dos seus descendentes até ao final da década de 1960. O que não aconteceu na totalidade, nem no prazo, tendo sido devolvidas cerca de 2,5 milhões de peças até 1952.

Em 1966, o Parlamento alemão decidiu que as peças ainda por devolver e que fossem adequadas para esse fim seriam emprestadas a museus ou a agências federais alemãs ao mais alto nível. O resultado dessa decisão foi, como descreve a Der Spiegel, uma espécie de roadshow de arte nazi, com os CCP e outros locais de armazenamento a tornarem-se ponto de reunião de comissários alemães para escolha de obras que se enquadrassem nos seus museus e instituições. Na prática, esses encontros fechados ao público resultaram na entrega de cerca de duas mil peças a 111 museus alemães e de 660 pinturas a 18 gabinetes governamentais tanto na Alemanha como no estrangeiro. O que faz com que hoje, segundo a revista, haja peças das colecções de Göring ou de alguns dos mais conhecidos ladrões de arte de Hitler em locais sensíveis como a Chancelaria alemã – segundo a revista, a sua remoção do gabinete da chanceler está para breve – ou na casa de hóspedes do Governo federal em Bona.

A Der Spiegel encontrou, nesta investigação, documentos que mostram que tanto o Governo federal alemão quanto o estado da Baviera venderam a preço de saldo peças das colecções de Hitler e de Göring no mercado de arte sem investigar a identidade dos seus proprietários originais, sem devolver as receitas dessas vendas ou sem as doar a organizações de defesa de vítimas do nazismo. O mesmo terá acontecido na Baviera com as propriedades imobiliárias de localizações paradisíacas dos antigos líderes nazis ou com o estranho caso da colecção de Heinrich Hoffmann, o fotógrafo de Hitler, classificado como um “major offender” pelos Aliados e que tinha na sua posse 278 obras de arte que dizia ser legalmente suas – o que não correspondia à verdade. Os Aliados confiscaram esses bens, Hoffmann conseguiu em 1956 que a Baviera lhe devolvesse, por ordem do seu ministro das Finanças, todas as obras confiscadas pelos Aliados. O facto foi mantido quase em segredo durante anos, até que a Áustria reclamou à Baviera a devolução de duas peças desse espólio – que tinham sido devolvidas ao fotógrafo de Hitler.

O estado de coisas preocupa vários peritos e políticos alemães. Faltam verbas para conseguir identificar a origem das peças ainda a vogar entre arquivos e salões mais ou menos esquecidos, diz o antigo ministro da Cultura alemão Michael Naumann. E, segundo disse à agência de notícias DPA Uwe Hartmann,o director do departamento que investiga a proveniência das peças dos museus públicos de Berlim, “faltam anos” – nas décadas de 1970, 80 e 90 não houve trabalho neste campo. 
 
 
 
 
 
 

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