O que é que está por detrás dos juízes?

O pintor Eduardo Batarda criticou com humor a iconografia tradicional da Justiça.

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Os juízes em frente à tapeçaria Nuno Ferreira Santos
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A tapeçaria é de algodão e tem 2,64 m x 5,58 m Nuno Ferreira Santos

Uma das mais recorrentes imagens dos tempos políticos actuais é a da Sala do Tribunal Constitucional (TC) onde se apresenta uma grande tapeçaria de Eduardo Batarda.

Quando nas páginas dos jornais e revistas ou na televisão o colectivo de juízes do TC, o seu presidente ou alguns membros isolados falam ao país, concentramo-nos nos rostos e no que dizem. Mas logo a nossa atenção foge dos primeiros planos para os fundos. E o que é que está lá atrás, no fundo dessa sala do TC? Uma grande tapeçaria de tons sóbrios e composição tão dinâmica que é inevitável uma aproximação à metáfora de celeridade que se exige aos pareceres dos juízes e à complexa teia de questões que cabe aos juízes analisar.

A tapeçaria em causa, uma das mais interessantes obras de arte pública dos tempos recentes, cumpre de modo perfeito a nobre tradição de decoração dos edifícios de Estado e grandes empresas (quando ainda havia dinheiro e gosto para tal nos governantes e nos gestores). Datada de 1989, pertence a uma prolífera fase de trabalho de Eduardo Batarda. Nela, o pintor nega a representação de objectos e figuras que tinham povoado de modo obsessivo a sua obra nas décadas anteriores, mas mantém uma alta densidade de ocupação das superfícies, criando finas tramas, densas redes ou labirintos, usando uma falsa bicromia e apresentando uma falsa bidimensionalidade.

Nas pinturas desse tempo, o artista nega a representação dos objectos e figuras que tinham povoado de modo obsessivo a sua obra nas décadas anteriores, mas mantém uma alta densidade de ocupação das superfícies, criando finas tramas, densas redes ou labirintos, usando uma falsa bicromia e apresentando uma falsa bidimensionalidade. Uma observação atenta dessas pinturas descobre delicadas tonalidades que o cuidado envernizamento final realça e apercebe-se de inesperadas profundidades e perfurações nos sucessivos, demorados e obsessivos modos de sobreposição de tintas – cada camada de pintura cobrindo uma anterior, em exercícios de progressiva ocultação (ou simulação de ocultação) nunca saberemos bem de quê.

Nascido em Coimbra em 1943, onde ainda estudou Medicina, Eduardo Batarda terminou em Lisboa em 1968 o curso da Escola Superior de Belas-Artes. Os anos em Londres (como bolseiro da Fundação Gulbenkian, entre 1971 e 1974) esclarecem o tipo de obras que, no regresso, expôs em Lisboa (Fundação Gulbenkian, 1975) e algumas das características posteriores da sua pintura. Batarda confrontou-se com a maturidade e dispersão da Pop Art britânica numa cidade cosmopolita e culta que lhe oferecia muitos outros motivos de atenção e estudo: cultura underground, popular e erudita, arte antiga e moderna, música, teatro e literatura, exercício quotidiano da democracia.

O modo como entendeu essas realidades e as cruzou com o pouco que achava que o seu país lhe dava (antes ou depois da Revolução de Abril) determinaram, durante mais de uma década, a criação de uma notável e extensa série de aguarelas sobrecarregadas de imagens, legendas e textos — que tanto podem ser de provocação pornográfica como erudita — que organiza em composições barrocas.

Em pinturas posteriores a 1980-81, Batarda prossegue esta tarefa de provocação e comentário, apurando os jogos de sentidos entre imagens, títulos e textos inscritos na tela, mas eliminado progressivamente a figuração, acentuando a obscuridade dos signos, obrigando-nos a ver de novo, a exercitar a memória, num permanente exercício de correspondência entre todo o tipo de conhecimentos, mas também de sabotagem de toda a linearidade explicativa. Este caminho condu-lo à obscuridade vertiginosa desta tapeçaria.

É certo que Batarda, ao executar a encomenda que estamos a ver, além de considerar as questões artísticas decisivas de integração da obra no local, também nela colocou algum do seu referido sentido de humor no modo como pensou o conjunto da obra ou alguns dos seus pormenores.

Por um lado, pensou a iconografia anterior e criticou-a: "A televisão portuguesa, de vez em quando, mostrava imagens de tribunais, também portugueses, e, do folclore do antigo regime, era bem conhecido o costume de enfeitar salas de audiência com murais (...). As imagens mostravam um certo número de Salomões, mães em estados variados de seminudez do Velho Testamento (umas extremosas, outras desnaturadas), balanças dividindo painéis em metades bem nítidas, mais mulheres em pé ou bem sentadas, com peitos estilizados e vendas nos olhos, segurando os outros atributos da Justiça (...)."

Por outro, propôs-se seguir alguns dos pressupostos da encomenda, como a necessidade de fazer uma "coisa ponderosa, solene e um tanto ou quanto maçadora; a obrigação de uma linguagem ‘actual’ (estávamos no fim dos anos 80, acho eu), que fosse genérica, esquemática para não dizer esquelética, abstractizante mas com um pé na figuração – ou figurativa a atirar para o abstracto; o princípio, simples e técnico, exigia alguma familiaridade com a técnica da tecelagem, a abstenção de muitas linhas oblíquas rasantes (isto cumpri eu pouco), a parcimónia na gama de cores, e uma certa coordenação tonal. O último pedia um sinal ou uma qualquer referência, cifrada, simbólica – ou mesmo oblíqua –, ao assunto ‘justiça’, ‘lei’, etc.".

A maqueta (o seu estudo para uma tapeçaria) é, em si, uma verdadeira pintura; mas não podia ter, por razões técnicas ligadas às limitações da transcrição para tapeçaria, a subtileza de texturas, ocultações e sobreposições das pinturas que fazia ao tempo.

Porém, a dimensão da peça, o modo como as dinâmicas e expressivas linhas de composição e ainda o modo como cumpre de modo críptico e culto o programa pedido garantem toda a qualidade e força à proposta e à transcrição obtida. É Batarda que nos diz: "Respondi a isto tudo, produzindo uma maqueta pintada a acrílico, nos tons de negro-azul-anil-índigo-cinzas escuros e claros, com a inconveniente presença de muitas linhas (tecnicamente falando), maqueta essa que decidira assumir ao ponto do ridículo a literalidade figurativa mais soez e boçal, ‘representando’ rolos, folhas escritas, códigos, códices, calhamaços, cartapácios e quantidade ruidosa de livralhada, tudo isto preenchido com ‘linhas’ que ‘eram’ as da escrita."

Sobre a recepção da obra conclui o artista: "Nos primeiros anos, a tapeçaria era reproduzida de vez em quando nas primeiras páginas do semanário que tinha cores, e aí compreendi o meu erro: aquela riscalhada não calhava nada bem com os pequenos afastamentos entre cores impressas, que então caracterizavam a arte tipográfica. Desde esse tempo, a HQ [do inglês, alta qualidade] passou a predominar na imprensa e na televisão, e sou levado a pensar que, se o público e principalmente os juízes já não podem aturar aquela maldita mas mesmo assim discreta imagem, o que seria se eu (ou alguém) lá tivesse posto a balança, ou o Salomão, ou os meninos coitados, ou as Cortes, ou a temível e cega mulher da espada?"

Mas pode ser que os juízes, de muito verem a obra de Batarda, já não sintam qualquer perturbação ou mesmo que, alguns deles, fechados no labirinto dos seus pesados códigos, sempre tenham sido cegos à rede em que a tapeçaria nos prende. E podemos, finalmente, desejar que o vórtice visual, que desestabiliza e atrai, mas que também dispara e liberta quem a olha de frente, inspire (mesmo que inconscientemente) as complexas decisões dos juízes que defendem a Constituição.

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