Heiner Goebbels: "O meu teatro não existe como símbolo de qualquer coisa"

Heiner Goebbels é um dos nomes maiores de um teatro que não se define pelo que se vê em palco. As suas peças têm sido objecto de discussão pelo modo como questionam o que são as fronteiras da imaginação e da percepção.

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Heiner Goebbels esta semana em Lisboa Enric Vives-Rubio

Esteve três vezes em Portugal: A Libertação de Prometeu (1995, Galerias Monumental), Max Black (1996, Culturgest) e Eraritjaritjaka (2006, Teatro Nacional São João), exemplos de um teatro inconformado onde o efeito visual não cede à retórica da mensagem, e onde a presença do actor é, muitas vezes, uma evocação do próprio cenário. Heiner Goebbels (Alemanha, 1952) regressou a Lisboa agora para uma conferência ontem no CCB sobre o seu trabalho e o que não o define.

Ao longo do seu percurso tem evitado uma definição do teatro a partir de uma hierarquia onde a música possa ser mais importante do que texto ou o cenário do que os actores. Porquê?

O teatro não deve ser reduzido a um instrumento com objectivo preciso. Temos de recuperar a ideia de que o teatro, tal como as artes visuais, a pintura ou a escultura, deseje ser visto mais do que uma vez.

Tem que ver com noções de tempo e percepção, mas tem também que ver com níveis de compreensão daquilo que entendemos como arte. O próprio texto, tido como elemento hierarquicamente superior, tem mais do que uma forma de ser compreendido. As convenções, as expectativas, e a longa tradição de institucionalização da arte, têm levado à criação de armadilhas na aproximação às artes performativas. Isto acontece desde o século XIX.

Eu começo um trabalho  com uma questão e nunca por uma resposta, precisamente porque não confio numa arte que se define afirmando saber como se comporta. O teatro que me interessa questiona profundamente o seu próprio futuro.  

De que modo faz operar os diferentes elementos que convoca para palco?

Quando começo um espectáculo a partir de um texto preexistente, nunca escolho um texto que compreenda ou domine. Em Stifters Dinge [2007], por exemplo, o que me interessava era saber se era possível fazer um teatro sem precisar dos outros. Comecei com a água e um piano e tornou-se uma peça etnológica. Mas isso surgiu do modo como o material foi solicitando uma manipulação específica.

Num espectáculo precisamos, constantemente, de propor uma tensão entre os diferentes elementos, tal como na música precisamos de contrapontos, como se criássemos um espaço entre essas diferentes forças: o texto e a música, o corpo e o espaço, a cenografia e a acústica, entre o que vemos e ouvimos. Estes contrapontos são importantes para abrir um espaço para a imaginação que é, no fundo, a coisa mais importante que se oferece ao público

Acha que é um diálogo entre a significação e o símbolo?

Sim, mas acho que é ainda mais complicado do que isso. Por exemplo: como determinar o que significa determinado símbolo perante uma variável tão grande como o número de espectadores por apresentação. Procuro oferecer o maior número possível de perspectivas e portas de entrada que podem, depois, ser analisadas de um ponto de vista semiótico por alguém mais interessado nas palavras, mas também por quem se interesse pelas formas, através da sua dimensão visual, ou mesmo sonora.

Às vezes, os críticos de música tendem a considerar o meu trabalho como sendo muito pobre, precisamente porque não se interessam pelo teatro, e os de teatro acham-me frio porque não há efeitos, ninguém rasga a T-shirt enquanto cospe sangue e se arrasta no chão. Mas outros sentem-se muito emocionados porque experienciam uma relação especial com um ou com vários dos elementos.  

Um dia uma mulher disse-me que tinha visto Deus durante a apresentação de Stifters Dinge. Perguntei-lhe onde e ela disse que havia sido quando as cortinas subiam e desciam e a luz, porque era intermitente, era reflectida pela água da piscina que ocupava o palco de forma particular. Eu disse-lhe que apenas me tinha preocupado com os reflexos, nada mais.

O meu teatro não existe como símbolo de qualquer coisa. Construo-o como um contraponto entre elementos. Tudo o que fica no interior, e entre esses pontos, é produto da imaginação.

Em que medida o contexto no qual se formou, e a geração à qual pertence, a do pós-guerra, o levaram a preferir o questionamento à afirmação, reavaliando inclusivamente o próprio papel da arte e a sua presença no espaço público?

Não sei identificar a causa, mas será certamente uma consequência de ter crescido nas décadas de 1960 e 1970, de ter feito parte do movimento político antiautoritarismo, de ter estudado sociologia e de o meu interesse nunca se ter concentrado particularmente apenas na música ou raramente no teatro.

Mas é também uma consequência dos tempos em que vivemos, onde reagimos o tempo todo e não observarmos o que nos rodeia. Na Alemanha aprendemos a ser muito cépticos acerca das pessoas que têm uma visão. Vimos todos que, em nome de uma visão e de um ideal, se podiam matar milhões e destruir o mundo. Prefiro reflectir sobre o modo como colaboramos, os artistas e os espectadores. Eu, com as minhas peças, e o público no modo como as vê. E isso é político. Não são as palavras ditas que são política, político é o modo como colaboramos com o público.

Podemos reconhecer no seu modo de desterritorialização das disciplinas artísticas o mesmo princípio de reconfiguração de um texto através do qual Heiner Müller procurava reflectir sobre o poder, a possibilidade poética e as políticas de percepção de um texto. Percebemo-lo no modo como a música, o cenário e até a presença dos actores confluem para uma mesma dramaturgia sem hierarquias. O que aprendeu com os tempos de colaboração com o encenador e dramaturgo alemão?

Acho que o mais importante do meu encontro com Heiner Müller foi descobrir a possibilidade de acreditar no poder utópico da forma. Ele fez-me, e não só a mim, reflectir sobre a forma do texto. Não podemos acreditar no que as pessoas nos dizem. Temos de ver como o dizem. E isso é o maior mistério da criação artística: a forma que se cria. A utopia reside na forma. No teatro estamos rodeados de uma série de formas que se assumem como naturais. Mas é quando começamos a desacreditar nessas formas naturais de representação que se passa a questionar tudo: a relação de trabalho, as divisões de tarefas, as noções mais básicas de teatro, de etiquetagem, como a intensidade, a presença, as relações entre música e teatro, ou entre o teatro e as outras artes. E esse é um óptimo ponto de partida.

Eu não leio textos à procura de imagens, mas escolho textos pelo seu ritmo, melodia, forma, palavras e tento evitar oferecer imagens. Procuro uma independência entre a imagem e o texto. E isso é algo que vem da minha experiência inicial.

Com as peças radiofónicas?
Exactamente. Quando se ouve uma peça de rádio descobre-se um novo espaço, do mesmo modo que o cinema mudo cria um imenso espaço acústico. Procuro nunca extinguir ou vencer esses espaços imaginados, ao tentar aproximar elementos que parecem, à partida, contrastantes.
 

Heiner Goebbels: Stifter's Dinge from Artangel on Vimeo.
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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