O "dia triunfal" de Pessoa: uma ficção verdadeira

Alberto Caeiro não terá surgido do nada no dia 8 de Março de 1914, como Pessoa pretendeu, mas a obra pessoana exigia mesmo um “dia triunfal”, defende António M. Feijó.

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A estátua de Fernando Pessoa no Chiado em Lisboa Miguel Manso

Dezenas de especialistas estão a debater na Fundação Gulbenkian, num colóquio internacional que termina este sábado, “o dia triunfal de Fernando Pessoa”. A par deste encontro de três dias, promovido pelo Projecto Estranhar Pessoa, outras instituições, como a Casa Fernando Pessoa ou o Teatro São Luiz, assinalam este sábado essa estranha efeméride que o próprio Pessoa viria a descrever, em carta a Adolfo Casais Monteiro, como “o dia triunfal” da sua vida, o dia em que lhe teria “aparecido” um poeta a quem deu o nome de Alberto Caeiro.

Nessa carta escrita já no final da sua vida, em Janeiro de 1935, Pessoa explica que tivera a ideia de criar um poeta bucólico para “fazer uma partida” a Mário de Sá-Carneiro, mas que já desistira do projecto quando, no dia 8 de Março de 1914, se acercou de uma cómoda alta e escreveu, sob o título O Guardador de Rebanhos, “trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase”. E acrescenta: “aparecera em mim o meu mestre”. Ao qual, diz, chamou de imediato Alberto Caeiro.

Já não seria pouco para qualquer poeta, mas o seu “dia triunfal” não se teria ficado por aí. Pessoa diz que a seguir escreveu de rajada os seis poemas de Chuva Oblíqua, numa “reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro”, e que tratou logo de “descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos” de Caeiro: um “Ricardo Reis latente”, que arrancou ao seu “falso paganismo” e, “em derivação oposta”, Álvaro de Campos, que veio com  a “Ode Triunfal”, escrita “sem interrupção nem emenda”.

No texto com que abriu, na quinta-feira, o primeiro dia do colóquio “A necessidade do dia triunfal” — e cujo argumento central resumiu ao PÚBLICO —, o professor e ensaísta António M. Feijó lembrou que o investigador Ivo Castro, coordenador da equipa responsável pela edição crítica de Pessoa, “demonstrou que os poemas de O Guardador de Rebanhos foram escritos entre 4 de Março e 10 de Maio de 1914” e que não há nenhuma indicação, nos manuscritos, de que algum poema tenha sido escrito no dia 8 de Março. A investigação de Ivo Castro sugere ainda que, ao contrário do que Pessoa dirá em 1935, o título do livro e o nome de Caeiro só teriam surgido depois da escrita dos poemas.

Observando que estes dados parecem reduzir o suposto dia triunfal a “uma fábula de Pessoa”, Feijó recorda depois a reacção da desaparecida lusitanista italiana Luciana Stegagno Picchio, que reconheceu a solidez das provas apresentadas por Ivo Castro, mas, mesmo assim, afirmou continuar a “acreditar na existência de um dia triunfal, em nome da poesia”.

O argumento de Feijó passa por admitir que Ivo Castro tem razão, mas, ao mesmo tempo, defender que “a intuição de Stegagno Picchio foi certeira”, ainda que esta não a tenha sustentado com as necessárias provas textuais. E o que Feijó se propôs foi justamente fornecer essa fundamentação, recorrendo a um numeroso conjunto de textos que, no seu conjunto, demonstrariam que “a obra de Pessoa é um sistema, e que esse sistema tem de ter um dia triunfal, decisivo”. E Pessoa escolheu “o dia em que lhe aparece esta figura quase divina que é Alberto Caeiro, musa que inspira todo o conjunto de heterónimos e que é, ao mesmo tempo, o seu mestre”. E decidiu posteriormente que esse “dia triunfal” ocorrera a 8 de Março, depois de — nota ainda Feijó — “ter chegado a hesitar entre 8 e 13 de Março”.

No prefácio que escreveu para a antologia de Caeiro publicada na colecção Pessoa Breve da Assírio & Alvim, que dirige com Fernando Cabral Martins, o pessoano Richard Zenith, prémio Pessoa em 2012, apresenta dados filológicos que coincidem com os de Ivo Castro, mas recorda que nessa Primavera de 1914, Caeiro começou por ser o autor não apenas de O Guardador de Rebanhos, mas também de odes futuristas depois atribuídas a Álvaro de Campos, e dos poemas interseccionistas de Chuva Oblíqua, que transitariam para o ortónimo. E em meados desse ano, poucos dias depois de Álvaro de Campos, surgiria Ricardo Reis e algumas das suas primeiras odes. Ou seja, Caeiro teria começado por ser, nota Zenith, “um poeta modernista multifacetado”.

Do início de Março a meados de Junho de 1914, surgem Caeiro, Campos e Reis, e Pessoa escreve poemas “de” cada um deles. Ou seja, o centro nevrálgico da sua obra, a que ele próprio chamará heteronímia, define-se de modo decisivo neste breve período. E são “esses três meses de criação poética extraordinária”, diz Zenith, que “foram celebrados por Pessoa como sendo o seu ‘dia triunfal’”.

Na comunicação que este sábado apresentará na Gulbenkian, intitulada “Reis triunfal”, Zenith irá defender que antes da “cisão entre Caeiro e Campos”, comprovada pela transição para o segundo das odes futuristas que Pessoa começara por atribuir ao primeiro, existira já uma cisão entre Caeiro e Reis. Ambos descenderiam, defende Zenith com argumentos que não será possível adiantar aqui, de um “poeta do paganismo concebido por Pessoa já em 1910”. Mais do que isso, Pessoa terá chegado a “contemplar”, a benefício de Ricardo Reis, um “momento triunfal” muito semelhante ao que ficcionou para Caeiro.

“E tinha boas razões poéticas para isso”, defende Zenith, observando que em três dias -— 12, 16 e 19 de Junho de 1914 —, Pessoa “escreveu e datou” 14 odes de Reis. “Não parece que a produção caeiriana, na sua primeira semana, tenha sido mais abundante”, conclui.

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