"O cinema está sempre à beira de morrer e sempre à beira de nascer"

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Foi Gilles Jacob que levou o "Apocalypse Now" de Coppola, ainda "work in progress" e sem genérico, para a Croisette Gonzalo Fuentes/Reuters

Condecorou Sharon Stone com a medalha de "officier des arts et des lettres" cheio de estremecimento perante a hipótese de picar o famoso seio... Viu o funeral de Fellini, em 1993, e desde então sente-se órfão... Recorda-se do monóculo de Fritz Lang, dos olhos e da voz de pérola de Jane Fonda - mais subversivos do que o dossier do FBI sobre "Hanoi Jane"... Recorda-se do narcisismo das vedetas, dos "golpes" dos presidentes do júri do Festival - Roman Polanski, Alain Delon, Gerard Depardieu e outros...

Recorda-se do Francis Coppola apocalíptico de Apocalypse Now e do Michael Cimino suicidário de As Portas do Céu - e a conclusão, hoje, é que é difícil estar à altura do mito... Recorda-se de Lars von Trier de blusão negro, careca, como um skinhead, no início dos anos 80, mas as aparências iludem: afinal é um homem em permanente estado de fragilidade. "Cannes não é um paraíso para almas sensíveis", resume Gilles Jacob. Ele sabe do que fala: desde 1977 é delegado-geral do maior festival do mundo, a partir de 2001 passou a ser o seu presidente.

Começámos a falar de estrelas porque Jacob, 78 anos, não disfarça o seu fascínio por elas no livro “La vie passera comme un rêve” (Éditions Robert Laffont, 2009) - em que, às tantas, se permite um pastiche "felliniano": o "je me souviens" constante, "eu recordo-me", vem obviamente do Amarcord de Federico... Mas é mais do que um homem fascinado pelas estrelas. Foi ele que: levou o “Apocalypse Now” de Coppola, ainda "work in progress" e sem genérico, para a Croisette; arrancou à Polónia comunista o "filme surpresa" de 1978, “O Homem de Mármore”, de Andrzej Wajda; foi ele que, em resposta à secção Quinzena dos Realizadores do festival, criou, dentro da selecção oficial, uma secção alternativa, Un Certain Regard, e uma Câmara de Ouro, o prémio para revelar primeiras-obras e nomes emergentes. É ele que hoje vai estar na passerelle vermelha a receber os convidados da 62.ª edição.

É Cannes ali e Cannes aqui. Amanhã estreia-se nas salas portuguesas “Cada Um o Seu Cinema”, um filme-mosaico, encomenda do festival a cineastas muito lá de casa - Moretti, Kitano, Angelopoulos, Ken Loach, Abbas Kiarostami, Wong Kar-wai, Cronenberg, Hou Hsiao-Hsien, Polanski, Lars von Trier, Oliveira, os irmãos Dardenne, são cerca de três dezenas... - para que, em três minutos, filmassem o que acontece entre o espectador e a sala quando as luzes se apagam. É um filme dedicado a Fellini, cheio de luto e de coisas que acabaram - embora alguns tentem encontrar sinais de vida nessa morte. Foi pelo fim que começámos esta entrevista.

No seu livro “La vie passera comme un rêve” assume que desde a morte de Fellini se sente "órfão". Em “Cada Um o Seu Cinema”, o filme em episódios que encomendou a uma série de cineastas, na comemoração do 60.º aniversário do festival (2007), muitos filmam a perda, o fim de um tempo: veja-se o episódio de Theo Angelopoulos em que Jeanne Moreau pergunta "Marcello [Mastroianni], estás aí?", procurando pelo seu companheiro dos filmes, e Marcello já cá não está. O presidente do Festival de Cannes está órfão do cinema?

Falava da minha orfandade em relação aos autores, a certos autores. Não penso que o cinema tenha morrido. O cinema está sempre à beira de morrer e sempre à beira de nascer outra vez. Repare: já se falava na morte do cinema quando apareceu a televisão, já se dizia que para o cinema sobreviver tinha que imitar a televisão, ser um telefilme, cheio de diálogos e de grandes planos... Por isso é que alguns autores desataram a fazer filmes sem diálogos nenhuns e completamente abstractos [risos].


A renovação acontece. É claro que nem sempre ao nível dos pioneiros... e nem é preciso falar de Méliès ou de Griffith... Veja os anos 60/70, em que a novidade foi fazer o espectador participar na criação dos filmes. Houve uma renovação da compreensão do espectador: a arte da elipse narrativa foi desenvolvida devido à maior rapidez da compreensão do espectador e ajudou, por outro lado, a essa maior compreensão. Isso hoje chamar-se-ia interactividade... [risos].

"Na época de Truffaut, o sucesso de filmes mais ambiciosos dependia muitos das críticas", escreve no seu livro. Hoje já não é assim, pois não? Como é que Cannes, palco, outrora, de batalhas cinéfilas, lida com essa perda?

Para Cannes a crítica é muito importante. É o laço de união entre filmes e espectadores. Mas há uma perda do domínio de influência da crítica, é verdade. Para falar de um caso que conheço: duas páginas no diário “Libération” a defenderem apaixonadamente um filme difícil não fazem mover as pessoas. Junte-se a tudo isso as dificuldades por que passam hoje os jornais, a diminuição do espaço da cultura e a pluralidade de eventos e quantidade de informação que, parece-me, cansam as pessoas. O problema é que não há entusiasmo. E por isso já não existem as batalhas cinéfilas como havia. Mas deixe-me dizer-lhe que o público continua a seguir a crítica. Mesmo que seja em sentido contrário: "Se eles gostam deste filme, não vou." [risos]


O problema é a falta de entusiasmo. Gosto das pessoas que se interessam, mesmo quando se enganam. No meu livro conto o episódio do júri de Cannes presidido por Françoise Sagan [1979]: Sagan defendia com unhas e dentes O Tambor de Volker Schlondorff, queria que triunfasse sobre Apocalypse Now [de Coppola], porque lhe interessava a matéria literária. A Palma de Ouro acabou por ir ex aequo para os dois. Hoje, vendo um e outro filme, sabemos que ela se enganou. Mas não faz mal. O que é importante é que se discuta o cinema. É isso que o torna vivo.

E a propósito de morte: no espantoso episódio de David Cronenberg em Cada Um o Seu Cinema assiste-se ao suicídio do último judeu vivo na última sala de cinema do mundo - podia ser um momento YouTube... Na sua nota de intenções Cronenberg desafia o espectador a adivinhar o que pensa sobre o passado e futuro das salas...

É um filme muito pessimista. Repare, nem se passa numa sala de cinema em mau estado, passa-se numa casa de banho. E a personagem vai suicidar-se. Não é a minha forma de ver as coisas, de outra forma disparava uma bala na cabeça a seguir a esta entrevista [risos].


O que me torna pessimista é a diminuição da curiosidade do espectador. Isso é que é dramático: todas as solicitações dos jovens, a Internet, desviam esta geração do cinema, e do cinema que não é americano. O cinema português é bom exemplo. Manoel de Oliveira é um enorme carvalho que colocou na sombra uma série de cineastas portugueses. Encarna a alma de um país. Ora, para além da curiosidade que de fora se possa ter por quem encarna a alma de um país, não sobra muito mais para descobrir outras coisas. E no caso português é injusto que não se conheça uma escola forte de documentarismo. Os jornalistas e críticos têm aí papel fundamental.

Gostaria de lhe contar uma pequena história a propósito do episódio de Oliveira [de Cada Um o Seu Cinema, em que o camarada Kruschev encontra o camarada Papa João XXIII]. Quando o Manoel mo mostrou, o filme era mudo. Mas eu disse-lhe: "É preciso som." Tudo bem que seja mudo, mas mesmo os filmes mudos tinham algum som, a música... Ele disse-me para eu encontrar uma solução, se ele gostasse metia-a no filme. Eu pensei em Erik Satie. Ele gostou, está no filme.

Em “La vie passera comme un rêve” retrata cineastas e actores que conheceu. Ficou desiludido com os ex-movie brats, Coppola e Michael Cimino, não ficou? Eles não estiveram à altura do mito... Descreve um Coppola no aeroporto de Nice desinteressado de Emir Kusturica que tenta falar-lhe do seu “Underground”. Naquele momento Coppola representou para si a América ignorante e demasiado satisfeita consigo mesma... Decepcionou-se?

Sim, devido a episódios do seu comportamento pessoal. Mas também os filmes: os primeiros são os melhores. A força da invenção está nas primeiras obras, mas também pode estar nas últimas, nas obras de velhice - veja-se o caso de Mozart. Coppola fez coisas espantosas, mas depois houve um certo cansaço. Essa sensação de decepção é algo que se tem sedimentando ao longo do tempo. É como diz: as pessoas não estão à altura do mito.


O caso de Cimino é diferente. É um grande cineasta mas está sempre a querer bater recordes. Os dos outros e os dele...

Depois de ter ganho duas Palmas de Ouro [The Conversation, 1974, e Apocalypse Now], Coppola está nesta edição na Quinzena dos Realizadores, com Tetro. Recusou estar na sua selecção oficial, optou pela rival Quinzena...

Sim, mas sabe: ele anunciou que não ia a Cannes. Ou seja: não disse que não ia para a selecção oficial, disse que não ia a Cannes, um lapso, como se a Quinzena não fizesse parte do festival... [risos]


Faz sentido essa rivalidade, hoje, entre uma secção supostamente mais institucional, a oficial, e outra supostamente mais inclinada para os novos valores, a Quinzena, quando ambas lutam pelos mesmos filmes? Mais: quando na secção oficial existe um prémio, a Câmara de Ouro - que você criou, aliás -, para dar visibilidade a valores emergentes?

Sim, é verdade. Mas a concorrência é saudável nos festivais, com outros festivais e internamente. Quanto mais não seja para os críticos dizerem que os programadores de uma secção são os imbecis porque deixaram o filme escapar para a outra... Tudo o que incita ao debate é bom...


Um dos "casos" de Cannes aconteceu em 1991, quando o presidente do júri Roman Polanski não gostou de nenhum filme, nem de A Bela Impertinente, de Rivette, até encontrar Barton Fink, dos irmãos Coen, que alguém lhe segredou ser "polanskiano". Resultado: Palma de Ouro, melhor realizador, melhor actor (John Turturro). Esse tipo de palmarés totalitário incomoda a direcção do festival? Por outro lado, não é melhor um palmarés assim, em vez de um palmarés ecuménico, que contenta todos?

As regras do festival dizem que não se podem concentrar os prémios mais importantes no mesmo filme. Há cerca de 20 filmes em competição, é la crème de la crème, e acabamos por premiar cinco. Se se dão os prémios a dois ou três é injusto para os outros. Queremos que aqueles cinco considerados os melhores estejam no palmarés. Se não, tudo termina com um gosto amargo. E quando não há um filme que se impõe, tenho para mim que é melhor repartir. Não intervimos na decisão. Estamos lá apenas para lembrar as regras.


Para voltar a Polanski: o problema foi que quando o convidei para júri convidei o realizador dos seus primeiros filmes maravilhosos e sarcásticos, não convidei o fã de Total Recall, aquele filme com o governador da Califórnia [Arnold Schwarzenegger].

Houve outro caso, o ano de Rosetta, dos irmãos Dardenne, Palma de Ouro em 1999. O júri era presidido por Cronenberg. Houve um prémio de interpretação aos actores, que não eram actores, de L'Humanité, de Bruno Dumont, que ainda teve o Grande Prémio do Júri.

Nesse ano percebeu-se que Rosetta tinha um embalo de última hora. No caso do filme de Dumont, o prémio de interpretação para pessoas que não são actores é doloroso - para os outros actores, que em alguns casos são grandes profissionais.

Um dos retratos mais bonitos do seu livro, como uma revelação que pressentimos certeira: Isabelle Huppert. Descreve-a como uma rapariga que vivia com um produtor, Daniel Toscan du Plantier, uma rapariga que raramente fazia ouvir a sua voz e que tinha sempre a mochila pronta para um dia eventualmente partir. Hoje é uma actriz maior. E a presidente do júri desta edição.

Huppert teve um pigmaleão, Daniel, com quem viveu nove anos. Ela era uma miúda. Foi ele que fez a actriz que ela é. Ela era mesmo como a personagem de La Dentellière [Claude Goretta, 1976]: falava pouco, ouvia muito. Levou tempo, mas armazenou tanto que hoje pode restituir tudo isso de forma muito sóbria, com uma espécie de serenidade.


E Catherine Deneuve? Para além do profissionalismo - "um soldado em serviço"-, fala pouco dela...

É alguém que se protege muito. É alguém por quem tenho imenso respeito mas não é alguém com quem me sinta confortável. Não dá para brincar com ela. A admiração por ela está paredes-meias com a intimidação.


A abertura desta edição cabe a Up, animação digital... A animação tem conquistado espaço nos festivais. Mas não lhe parece que o que poderia ser uma saudável forma de deitar abaixo hierarquias entre géneros corre o risco de se tornar uma quota obrigatória ou efeito de moda?

Seria maravilhoso se houvesse um conceito por trás, mas não há. Era Cocteau que dizia que já que o mistério das coisas se nos escapa, o melhor é tornarmo-nos organizadores delas. Quem escolhe os filmes é Thierry Frémaux [director artístico] e sei que a escolha dele foi motivada por esta razão: o ano passado não caiu nada bem a abertura com aquele filme brasileiro sobre os cegos [Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles, adaptando Saramago], as pessoas não gostaram. Este ano Frémaux não podia ter um filme sombrio. Uma gala de abertura de um festival deve ser uma festa...


Este ano há muitos filmes sobre as pessoas de hoje, os seus problemas. Gosto de filmes de época, mas não faz sentido hoje que não haja ecos dos problemas contemporâneos. Vai haver muito presente nesta edição. A homossexualidade, por exemplo, vai ser um dos temas.

Vem cobrir o festival?

Sim

Não se esqueça então da sua máscara.


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