Não é por culpa da crise, é por causa da crise: acção

O que pode dizer de nós – nós Estado, nós cidade, nós teatros, nós público e espectadores, nós artistas – a possibilidade de fim do Alkantara Festival? Vinte e um anos depois, que espécie de maturidade democrática é esta que permite que o mesmo projecto que recusou tornar igual o que era singular possa correr agora o risco de terminar, quando há ainda um mundo inteiro de caminho a percorrer?

Vivemos em permanente défice e a crise, antes de ser económica, é de valores. Ou, para se poder argumentar que é económica, é porque há muito se perderam os valores. O aviso deixado pelo Alkantara não é uma surpresa, mas deveria alarrmar-nos ao ponto de transformar as três semanas de festival num amplo espaço de debate e de acção onde as metáforas que os espectáculos trabalham fossem, afinal, a matéria de trabalho para o futuro. Não pode ser suficiente a resignação e a aceitação de que a crise nos fez alterar hábitos porque, afinal, o mesmo Estado que não acautelou paulatinamente uma evolução económica é o mesmo que atalha de foice o que demorou anos a ser construído. Vinte e um para sermos exactos. Vinte e um anos que, afinal, justificam, em grande medida, que aqueles que se sentam nas cadeiras da Secretaria de Estado da Cultura e da Direcção-Geral das Artes tenham, afinal, et pour cause, um trabalho para fazer. Mesmo que, muitas vezes, o protesto cultural da comunidade artística se meça conforme a extensão do cheque e o tempo de chegada do mesmo, o combate dos tempos que se seguem obriga a mudar o discurso.

O problema não é a crise ser económica porque o problema não é de dinheiro. O problema é de valores porque, em nome da crise, o mesmo Estado que clama pelos empreendedores cria regras de aferição para projectos que o substituem na missão de serviço público, impedindo que esses mesmos projectos cresçam, por inteiro, na sua singularidade. É uma escolha política, para não lhe chamarmos outra coisa. Chamemos-lhe medo, por exemplo. Um medo que denuncia a mediocridade do discurso político e dos políticos, que aponta o dedo à incoerência das políticas culturais, que recusa ser a fachada de um estado – e de um Estado – das coisas que vai apodrecendo por dentro e que com ele quer levar aqueles que não escolheram estas políticas de terra queimada, que não abraçam a causa da resignação, que não aceitam adaptar-se a tudo.

É por isso que devemos aproveitar os tempos extraordinários que enfrentamos. Vamos discutir a Europa nas próximas semanas por força das eleições. Há mais Europa do que aquela que projectos como o Alkantara ajudaram a construir? E, com a previsível inalteração do quadro orçamental que se aproxima, que anéis queremos guardar? Como é que o Estado não perde a face e reage à vergonha de ter Lisboa a comportar-se como aquilo que a Secretaria de Estado não sabe ser: catalisador, gerenciador de expectativas, parceiro dialogante, agente activo? Junta-se a coincidência de irmos ter novas ou renovadas direcções nos teatros municipais de Lisboa. Está na altura de nos sentarmos à mesa e decidir, realmente, com que gestos queremos assumir uma identidade.

Por isso, o anúncio de fim do Alkantara é um aviso. Não se combate a precariedade com mais precariedade e é isso que o Alkantara diz no programa: “Não repetiremos o tour de force desta edição 2014.” A arte tem um valor, esse valor pode ser majorado em factores que devem distinguir o que é diferente. As regras dos concursos devem ser cumpridas, mas esses concursos decorrem de um contexto, respondem-lhe, não o condicionam, não escolhem por ele, não impedem aquilo que é diferente de o ser verdadeiramente. E o Alkantara Festival é diferente. Um Estado com vergonha do que é diferente, e daquilo que o ajuda a ser Estado, é um Estado cobarde. Um Estado com vergonha dos agentes culturais que o substituem na missão de serviço público é um Estado que não se respeita. E quando perdemos o respeito por quem nos governa, por força das suas políticas inanes, sobra-nos muito pouco.

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