Morte de uma obra de arte: a tela de Josefa de Óbidos no Buçaco

Tal como as pessoas, as obras de arte também morrem. Muitas vezes esquecemos que são seres viventes e, por isso, sujeitas à lei inapelável da ruína física, que decorre da fragilização das condições ambientais e de circunstâncias fortuitas que contribuem para as degradar, arruinar ou, pura e simplesmente, destruir.

Vem isto a propósito do incêndio, alegadamente provocado por um curto-circuito, que reduziu a cinzas, na passada véspera de Natal, a Sagrada Família, tela da famosa pintora Josefa de Óbidos. O quadro, que enriquecia o acervo artístico da igreja do Mosteiro de Santa Cruz do Buçaco, era considerada a jóia do recheio dessa casa religiosa, mítico “deserto” dos monges carmelitas descalços destinado à vida eremítica, classificado depois como monumento nacional.

Em termos de património artístico, a perda é irreparável (como todas as perdas…), mas esta é especialmente importante por se tratar de um quadro barroco de assinalável mérito, que marca um momento de viragem na produção da famosa pintora seiscentista. Aliás, pereceram neste incêndio várias outras obras de valia, tanto de talha como de imaginária e de pintura, num lastro cripto-artístico que não foi ainda exactamente avaliado, aguardando-se urgente relatório por parte dos organismos de tutela. Mas é a Sagrada Família, sem a mínima dúvida, a perda patrimonial mais significativa que decorreu deste incêndio.

Aos 34 anos de idade, Josefa de Ayala e Cabrera, conhecida como Josefa de Óbidos (Sevilha,1630-Óbidos,1684) pintou esta tela devocional para os frades do Buçaco, aí representando um tema de piedade tridentina bem adequado ao sentido de pobreza sacrificial vivenciado no deserto carmelitano: o voto do Menino Jesus ao recusar o leite que escorre do seio descoberto da Virgem Maria e preferir abraçar a Cruz, que São José, à esquerda, segura numa espécie de acto premonitório da Paixão, e com relevância especial numa casa dedicada ao culto da Santa Cruz. Temas como este tinham grande impacto no século XVII, no quadro da doutrina contra-reformista tão atreita a desenvolver uma propaganda credível através do bom uso das “imagens sagradas”, e o quadro de Josefa não fugiu à regra, com cuidados de execução que atestam o desvelo com que a encomenda foi cumprida – tratando-se ademais de uma época conturbada de guerra com Castela em que se consumia o reino português recém-independente. Este tema será, aliás, retomado por Josefa, oito anos volvidos, numa das telas para a igreja dos carmelitas de Cascais (1672), conservadas na igreja matriz dessa vila.

O interesse histórico-artístico do painel radica no facto de se tratar de uma das primeiras encomendas de Josefa como pintora profissional, depois de uma fase onde a primazia da sua actividade criativa fora (para além da colaboração com o pai) a miniatura sobre cobre, a gravura a buril, a caligrafia e, ao que se crê, a imaginária em terracota. O retorno de Baltazar Gomes Figueira (1604-1674), seu pai e mestre, à vila de Óbidos, coincide com a fase em que paulatinamente ele deixa de pintar, depois de uma carreira de sucesso (primeiro em Sevilha, depois na corte “restauracionista” de Lisboa), e as previsíveis dificuldades financeiras da família levaram Josefa a ter de responder a encomendas sacras para assegurar sustento. A primeira foi a pintura de cinco telas para o retábulo do altar de Santa Catarina (1661) na Igreja de Santa Maria de Óbidos, com resultados de tal modo sedutores que lhe abriram as portas desse mercado beato de casas religiosas, confrarias, irmandades e oratórios privados de província, que se manterá atraído pela pintora até à sua morte em 1684.

A tela do Buçaco, de médio formato (1030x1580 mm), estava assinada e datada de 1664, e em precárias condições conservativas, o que levou a que fosse restaurada no Instituto José de Figueiredo, a fim de poder ser “mostrada” em 1991, na grande exposição Josefa de Óbidos e o Tempo Barroco, realizada no Palácio Nacional da Ajuda, onde figurou com o n.º 23 (entre 113 pinturas). O quadro foi encomendado pelos “frades do deserto” (cujo cenóbio fora fundado em 1628 a instâncias dos duques de Aveiro e do bispo-conde de Coimbra D. João Manuel) e mostra, dentro das suas naturais convenções de discurso e limitações inventivas, o talento da artista, a maturação do seu estilo e a crescente afirmação dos seus pessoalíssimos modelos e receitas. São essas quaIidades que justificaram a fama de Josefa no contexto da arte portuguesa do século XVII (e no contexto do Naturalismo barroco peninsular, em que a sua arte se insere). É por tudo isto que a destruição da Sagrada Família, de 1664, não pode deixar de ser considerada uma tragédia para o património artístico nacional.

Não deixa de ser considerado como triste metáfora que uma Sagrada Família com estas características de unicidade artística desapareça, e logo na noite de Natal!

Por último, uma referência não despicienda: as obras de Josefa de Óbidos e de Baltazar Gomes Figueira mostram um crescente (e de certa maneira inesperado) peso em termos de mercado de obras de arte, atingindo em recentes leilões estimativas de transacção que devem ser considerados como verdadeiramente excepcionais. Após a última exposição de obras destes pintores seiscentistas (realizada no Museu de Óbidos, em 2005), foram identificadas mais seis peças suas, que aguardam revelação. Tudo isto põe a nu a perda significativa que o património artístico nacional acaba de sofrer com a destruição da tela de Josefa no Buçaco, cuja valia é incalculável. E vem reabrir o velho debate em torno das precárias condições de conservação e segurança do nosso património histórico-artístico, carecido de maiores desvelos e a exigir reforçadas responsabilidades.

 

Vitor Serrão

Historiador de Arte/professor universitário
 
 
 
 
 

Sugerir correcção
Comentar