Milton, uma “Travessia” sem riscos no Coliseu do Porto

O Coliseu do Porto não encheu (longe disso) para receber a celebração dos 50 anos de carreira de Milton Nascimento. Mas nem por isso fez frio na velha sala. Milton está em boa forma e as suas canções permanecem surpreendentemente novas. Ainda mais quando passam pelas mãos de uma banda competente e recebem ajudas de peso como a de Carminho.

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Milton Nascimento no Coliseu do Porto nFactos/Fernando Veludo
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Não há travessias sem riscos, mas a “Travessia” de 50 anos de carreira que Milton Nascimento apresentou, neste domingo, no Coliseu do Porto fez-se com a segurança de uma voz única e com um punhado de canções que fazem parte por mérito próprio do cancioneiro do Brasil contemporâneo. Com “Cais”, “Maria Maria” ou “Canção da América”, com tanta e tão bela matéria-prima é mais difícil errar na rota e perder o Norte. Principalmente quando Milton se apresenta, como apresentou, num bom momento de forma. A sua voz foi capaz de produzir os mesmos deliciosos falsetes de sempre (a introdução de “Cais”, nas variações de “Lília”), surgiu grande e luminosa, enternecedora e empolgante, ora comovedora nos registos baixos e nas estrofes mais sensíveis, ora eufórica nos momentos mais joviais que nos falam do sol, da paixão, da amizade.

Milton, 71 anos feitos este fim-de-semana, move-se lentamente, tenta requebrar nos ritmos mais próximos do samba mas não vai além do ensaio, do trejeito. Não é, porém, a dança que nos leva até ele. É a voz e as suas canções e essas, meio século depois, continuam poderosas. O concerto do Coliseu do Porto assentou num repertório baseado no concerto comemorativo da sua “Travessia”, editado em CD e DVD, mas não lhe obedeceu por completo. A abrir, “Bola de Meia, Bola de Gude”, não faz parte desse registo, por exemplo. No concerto da noite de domingo não entraram outros clássicos que fizeram parte dessas obras comemorativas, como “Canção do Sal”. E mesmo em todos estes concertos não houve lugar para todas as criações geniais do cantor. Como a magnífica “Cio da Terra”. Meio século de uma carreira tão intensa, embora muito concentrada até meados dos anos 80, não cabe todo num disco ou num espectáculo.

O que se viu e ouviu foi ainda assim suficiente para viver e reviver Milton e a sua música. Agora numa versão menos sinfónica e mais eléctrica, por culpa de uma banda de jovens competentes na qual valeu a pena seguir com especial atenção a guitarra de Wilson Lopes e os sopros de Widor Santiago. E com arranjos refrescados ou até alterados. Milton sempre concedeu à sua música latitudes para o improviso, para um registo mais próximo do jazz. No rejuvenescimento de “Lília”, no entanto, chegou-se perto da recriação. Mas também aqui, nada de muito novo. Desde a gravação original pelo Clube de Esquina, em 1972, esse tema aparece e reaparece sempre igual mas sempre novo.

Para engrandecer a viagem faltava ainda a aparição de Carminho, que cantou a solo canções suas, fez duetos com Milton sobre temas do cantor ou em “A Rosinha dos Limões”, um fado tradicional. Nem sempre os diálogos funcionaram bem, mas a empatia e o gosto da partilha pareceu tão autêntico que relativizou o resultado final. O melhor momento desta fase do concerto aconteceu aliás quando Carminho se dedicou a uma interpretação fabulosa do fado de Vinícius “Saudade do Brasil em Portugal”, sem dúvida um momento arrebatador e marcante da noite.

Duas horas após o início, Milton iniciava as despedidas com “Nada Será como Antes” e depois “Maria, Maria”. A sala do Coliseu, meia ou pouco mais de meia (talvez faça sentido alguma reflexão sobre os preços dos espectáculos nos dias que o país vive), estava já então rendida. Dançou e cantou. “Mas é preciso ter força/É preciso ter raça/É preciso ter gana”. Além da força das palavras, a música de Milton vale o que vale porque tem os ingredientes da vida. No Coliseu, esses ingredientes foram devidamente agitados e misturados e o concerto foi feliz. Mas, para a legião de adeptos, havendo Milton e as suas canções poderá haver alguma vez algum mau concerto?
 

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