Mário de Oliveira (1914-2013): o arquitecto que morreu duas vezes

Trabalhou dentro do sistema colonial. É o que explica que a sua produção urbanística e arquitectónica, quase sempre de promoção pública, tenha sido tantas vezes negligenciada. Morreu na terça-feira, aos 98 anos.

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Escola Técnica Silva e Cunha, actual Liceu Nacional de São Tomé e Príncipe, inaugurada em 1969, de Mário de Oliveira Arquivo Histórico Ultramarino
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Mário de Oliveira (primeiro à esq.), com o político Baltasar Rebelo de Sousa (segundo à esq.) Cortesia Ana Vaz Milheiro
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Mário Soares, com a filha Isabel, durante o exílio em São Tomé num dos apartamentos desenhados por Mário de Oliveira na década de 60 Cortesia Fundação Mário Soares
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Pavilhão de Tisiologia do Hospital de Bissau, actual Hospital 3 de Agosto, realizado em parceria com Lucínio Cruz em 1951 Arquivo Histórico Ultramarino

O desaparecimento do arquitecto Mário de Oliveira, que morreu na terça-feira no Hospital de Vila Real, equivale a uma segunda morte. A primeira ter-se-á dado simbolicamente, quando, nos anos de 1980, decidiu retirar-se voluntariamente da vida pública e exilar-se no Hotel Mira Corgo, em Trás-os-Montes, para pintar.

A sua actividade ao serviço do Ministério do Ultramar e o esquecimento a que Mário de Oliveira e os seus colegas arquitectos estiveram votados durante os anos que se seguiram ao 25 de Abril talvez tenham, em parte, justificado a opção.

Mário de Oliveira integrou o Gabinete de Urbanização Colonial, em 1947, organismo criado por Marcelo Caetano, o último presidente do Conselho do Estado Novo, três anos antes. Foi seu funcionário até à revolução de Abril, quando, já como Direcção de Serviços de Urbanismo e Habitação, o gabinete foi extinto. Desenhou edifícios públicos e planos urbanos para as regiões que então constituíam o império colonial português, com a excepção de Macau. Pertenceu a um contingente de profissionais que, por estar demasiado conotado com o Estado Novo, acabaria por desaparecer das narrativas historiográficas deste período. Seria a actividade de artista plástico a dar-lhe maior popularidade. Enquanto crítico de arte, destacou-se na revista Colóquio Artes e Letras da Fundação Calouste Gulbenkian, publicando entre 1959 e 1969.

Não foi um aluno exemplar, tendo tido sempre notas médias. Estudou primeiro em Lisboa e depois no Porto, na Escola de Belas-Artes, onde ingressou em 1936, sendo mais tarde estagiário no atelier de José Almeida Segurado. Em 1945, concluída parte da formação formal, partiu para Espanha e estudou na Escola Superior de Arquitectura de Madrid. Só se diplomou no ano seguinte.

Como arquitecto, Mário de Oliveira era essencialmente um conservador, se analisado no plano mais figurativo ou estilístico. Comprova-o o Pavilhão de Tisiologia do Hospital de Bissau, hoje Hospital 3 de Agosto, realizado em parceria com Lucínio Cruz em 1951. Seguindo uma espartana organização funcional, o edifício actualmente em ruínas é um exemplar notável da arquitectura de promoção pública colonial: recurso a materiais resistentes, baixa manutenção, boa adaptabilidade ao clima tropical.

De maior fôlego criativo, a Escola Técnica Silva e Cunha, actual Liceu Nacional de São Tomé e Príncipe, inaugurada em 1969, era descrita na Voz de São Tomé como o "maior conjunto de edifícios públicos construídos até então" no arquipélago. Os cerca de 7453 metros quadrados de área coberta repartiam-se por diversos volumes efusivamente funcionais: blocos de salas de aulas, cantina, ginásio, oficinas, etc.. A escola técnica representava o culminar de um ciclo de obras públicas, "estudadas de modo a traduzir todo o arranjo funcional da planta, atendendo-se também à protecção do edifício", como escrevera anos antes sobre a sua própria produção.

Mas também assinou edifícios que se aproximaram de um léxico mais moderno. O bloco residencial, em São Tomé, que abrigou Mário Soares durante o exílio de 1968, com varandas proeminentes e engenhosos sistemas de ventilação, é o mais surpreendente por combinar as duas aprendizagens, solidez funcional com alguma criatividade experimental e mais abstracta na resposta ao clima. Já o edifício para os funcionários do Banco Nacional Ultramarino, na marginal da baía de Ana Chaves, deveria elevar-se sobre pilotis, que entretanto foram ocupados com construção depois da independência do país. O arquitecto encontrou uma dupla funcionalidade para este dispositivo moderno, pouco habitual na sua obra: "Guarda de automóveis, ou ainda recreio coberto das crianças."

O congresso de 1948

É, contudo, como voz dissonante face ao modernismo instalado em Portugal no pós-Segunda Guerra Mundial que Mário de Oliveira se estreou publicamente. No I Congresso Nacional de Arquitectura, de 1948, celebrado como determinante na entrada da cultura arquitectónica moderna no país, bateu-se por uma expressão estética que manifestasse uma via nacionalista, baseada na cultura e economia locais e na especificidade do território, porque "a paisagem faz a arquitectura", como então proclamou contra os discursos mais internacionalistas.

É a sua voz, aliás, que faz parte da historiografia como a atitude reaccionária do congresso.

Mas esta posição permitiu-lhe, cerca de duas décadas depois, recepcionar com erudição as teses que assentavam a prática do urbanismo no conhecimento do habitat local, tornando-o um "progressista" no domínio das ideias urbanísticas em voga nos anos de 1960.

Em 1965, escreveu: "O homem não é um ser mecanizado, é antes e totalmente um ser sensível e vivo, que tem um habitat próprio e só nele se pode desenvolver em condições adequadas ao meio ambiente."

Contrariando as opiniões que atacavam os arquitectos que então trabalhavam em Lisboa para África, de desconhecerem a realidade colonial, Mário de Oliveira viajou ao serviço do Ministério do Ultramar. Em 1958, deslocou-se a Bissau para preparar o plano para os novos bairros populares, designação que substituiu o termo "indígena", entretanto politicamente incorrecto. Levantou as povoações informais das diferentes etnias que viviam na periferia da capital guineense, elogiando a implantação dos bairros por respeitarem os ventos dominantes e analisando a disposição das casas tradicionais. O processo acusava a influência do inquérito à arquitectura regional portuguesa – publicado como Arquitectura Popular em Portugal em 1961 – entre os diferentes circuitos da profissão. Do plano que propôs em 1959, muito pouco seria implementado no terreno, sendo reconhecíveis os traçados das vias principais.

As viagens

A viagem de 1960 que fez a São Tomé, também com o objectivo de preparar o novo plano urbano da cidade, permitiu alterar a estratégia urbanística praticada até então pelos técnicos do Ministério do Ultramar, revelando-o pioneiro na consulta às populações e inclusão dos seus modos de vida no desenho, impondo uma nova abordagem. Colocaria de lado os argumentos estéticos, defendendo a necessidade em "evitar que a população activa perdesse tempo e se fatigasse em longos percursos entre a habitação e o emprego", promovendo processos de articulação e maior fluidez entre as diferentes zonas funcionais da cidade colonial, até então de estrutura claramente hierarquizada e formal.

A integração das comunidades africanas era então a palavra de ordem. Nesse sentido, elaboraria a proposta para a unidade residencial da Quinta de Santo António destinada à população desfavorecida. Repôs uma implantação mais orgânica, influenciada na Cidade Jardim. Mas seria no desenho das casas que tentaria uma nova abordagem: decidiu então avançar com seis tipologias distintas – três a serem construídas em alvenaria de pedra e outras três recorrendo à madeira, sistema tradicional são-tomense. Nunca consideraria estes projectos seus, por resultarem da consulta às populações e portanto derivarem de uma autoria colectiva, como reconheceu em relatório endereçado à tutela.

Mais tarde, a propósito da sua participação no plano de Urbanização Quelimane, em Moçambique, resultado de uma longa viagem a Moçambique em 1963-64, manteria que a organização da "casa higiénica e cómoda" se fizesse "à maneira" do habitante local, sem "perder as características vivenciais dos seus habitats tradicionais, o que não poderia ser eliminado bruscamente". Deste modo, confirmava que a casa tradicional africana deveria ser integrada no desenho dos arquitectos de forma a ser progressivamente melhorada. O objectivo era, naturalmente, uma ocidentalização gradual das populações locais, aspecto compatível com os ideais colonizadores que o Estado Novo acalentava em plena década de 1960, como resposta às pressões independentistas.

Mário de Oliveira trabalhou, portanto, dentro do sistema colonial. Talvez isso explique por que as suas produções urbanística e arquitectónica, quase sempre de promoção pública, tenham sido tantas vezes negligenciadas. O seu compromisso, contudo, residiu num saber técnico, empenhado em solucionar as carências estruturais das populações coloniais. Era um homem "com mundo, e com um horizonte vastíssimo para actuar", como esclareceu em tempos Adriano Moreira, seu amigo que, enquanto antigo ministro do Ultramar, também acompanhou a sua actividade profissional: "Cada sujeito que me aparecia [no ministério] tinha um passado incrível. De África à Índia… Essa vida era muito apaixonante." Assim era Mário de Oliveira: um homem de um passado com algo de assombroso.

Morreu sete dias antes de completar 99 anos.
 
 

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