Camões e Camilo num jardim do Porto? É o novo filme de Oliveira

O realizador está a rodar no Porto "O Velho do Restelo", onde se cruzam Camões, Camilo, Pascoaes e D. Quixote de La Mancha. “Encontramo-nos todos na eternidade dos filmes do Manoel de Oliveira”, diz Luís Miguel Cintra

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O Velho do Restelo é uma reflexão sobre Portugal e a sua História, à luz da crise actual Lara Jacinto/nFactos

O que fazem Luís de Camões, Camilo Castelo Branco, Teixeira de Pascoaes e D. Quixote de La Mancha sentados num banco de jardim duma urbanização da Foz portuense?

A resposta só será conhecida lá mais para o final do Verão, quando ficar concluído O Velho do Restelo, o novo filme de Manoel de Oliveira, que por estes dias está a ser rodado no Porto.

Resguardado pela produção numa tenda de campanha, por razões de idade e de saúde, de qualquer contacto com pessoas exteriores à equipa de rodagem – e especialmente de qualquer tentativa de registo fotográfico –, o realizador de 105 anos está finalmente a concretizar um dos projectos de que vinha falando insistentemente desde que terminou O Gebo e a Sombra (2012).

O Velho do Restelo será algo entre uma curta e uma média metragem, que “poderá ir dos 25 minutos a menos de uma hora”, explica ao PÚBLICO Luís Urbano, o produtor de O Som e a Fúria que conseguiu reunir as condições para o avanço do filme. Mas o que verdadeiramente irá ser, ninguém poderá avançar nesta fase em que a rodagem ainda decorre, cumprindo-se hoje o último dos cinco dias previstos.

“É difícil falar pela cabeça do Manoel, sobretudo quando ele, como acontece às pessoas que, pela muita idade que têm, já ganharam a liberdade e a capacidade de síntese, deixa que seja também o inconsciente a falar”, diz Luís Miguel Cintra, o mais antigo actor da trupe do cineasta, e que, desta vez, é Camões. Os outros intérpretes são Mário Barroso, Diogo Dória e Ricardo Trepa, tudo nomes familiares no cinema de Oliveira.

Passeando, num intervalo das filmagens, no jardim dos Pinhais da Foz, o Camilo Castelo Branco de Mário Barroso parece saído directamente dos fotogramas de Francisca (1980) e O Dia do Desespero (1992), que o próprio já interpretara. O mesmo casaco preto, o bigode e os óculos reconstituem a figura do escritor que – com Agustina Bessa-Luís – Oliveira mais tem vertido para o ecrã. Ao lado, Teixeira de Pascoaes (Diogo Dória), no seu fato castanho às riscas e boina de início do século XX, senta-se entre Camões e D. Quixote. “E uso o relógio autêntico, um Omega de bolso, que foi do Pascoaes”, diz Diogo Dória, assinalando o rigor da reconstituição histórica das personagens, que contrasta com um décor do tempo presente.

Ricardo Trepa vê no seu D. Quixote “a evocação de um personagem que pertence tanto à história da cultura universal como ao sonho do próprio realizador”.

“Estamos entre um diálogo filosófico e uma situação onírica”, acrescenta Luís Miguel Cintra. “Encontramo-nos todos na eternidade, que é a eternidade dos filmes do Manoel."

O compositor José Luís Borges Coelho, convidado pela terceira vez a musicar o cinema de Oliveira (depois de Inquietude e de Cristóvão Colombo – O Enigma), arrisca também a sua leitura: “Parece-me uma espécie de Concílio dos Deuses, para o qual o próprio realizador se convoca”.

“Não sei bem o que é que este filme vai dar. Mas estou radiante por estar a fazê-lo”, diz Mário Barroso, expressando o sentimento partilhado por toda uma equipa que tem “os suspeitos do costume”: o suíço Renato Berta na fotografia, os franceses Henri Maikoff no som e Valerie Loiseleux na montagem, Júlia Buisel na anotação.

A actriz Leonor Silveira não faz parte do elenco, mas fez questão de fazer uma visita a Manoel de Oliveira. “Que estás aqui a fazer? Este filme é só para homens”, ouviu-se dizer quando a protagonista de Vale Abraão chegou ao plateau.

Dificuldades financeiras
Entre outras visitas afectivas e familiares – e Manoel de Oliveira, desta vez, joga mesmo em casa, já que a tenda da rodagem está montada junto ao seu apartamento –, também o vereador da Cultura da Câmara do Porto, Paulo Cunha e Silva, quis ver como decorriam as filmagens. “Corre aqui uma brisa de História”, comentou, perante os personagens que desfilavam à sua frente.

A autarquia, através da Porto Film Comission, é um dos apoiantes, em serviços e logística, da produção de O Velho do Restelo, que recebe as contribuições maiores da Secretaria de Estado da Cultura (SEC) – que reconheceu o “mérito cultural” no projecto de Oliveira –, mas também do Ministério da Cultura francês. Numa entrevista em Novembro do ano passado à revista Cahiers du Cinéma, o realizador lamentou as dificuldades que estava a ter em conseguir fundos para rodar o filme. Os apoios da Câmara Municipal do Porto e da SEC surgiram numa fase posterior.

“Este filme é um work in progress. O importante para nós foi reunir os meios necessários para fazer a preparação e a rodagem, e garantir algumas fases da pós-produção”, diz Luís Urbano, não avançando o custo previsto. “O orçamento está a ser gerido à medida das necessidades; vamos procurando financiamentos complementares e apoios em espécie”, acrescenta o produtor, referindo o exemplo da Universidade Católica do Porto, onde será feita a pós-produção. O Velho do Restelo incluirá também excertos do arquivo filmográfico de Oliveira e gravuras de Gustave Doré (duma edição portuguesa de D. Quixote de la Mancha).

Com acabamento previsto para Agosto, o filme tem já distribuição garantida em França (no circuito televisivo e de festivais) através da Epicentre Films.

“Sempre acreditei que era possível fazer este filme. No último ano, tenho vindo muitas vezes visitar o Manoel e tenho percebido que aquela cabeça continua a ter um funcionamento intelectual fantástico. Ele só fica enervado porque o corpo não responde”, diz Luís Miguel Cintra.

O olhar feliz do realizador, ao final da tarde de sexta-feira, depois de cumprido integralmente o plano de trabalho do dia, parece mostrar que o espírito está a vencer o corpo.

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