Mais um concerto notável dos Arcade Fire

Pela quarta vez, os Arcade Fire tocaram em Portugal. Desta vez foi sábado no Rock in Rio. E foi, mais uma vez, um concerto para recordar. A surpresa da noite foi Lorde.

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Agência Zero

Mais um concerto fantástico dos canadianos Arcade Fire. Quando se pensa em rock como uma forma de exposição sem simulacros, de possibilidade de partilha de uma energia intraduzível para grandes plateias, é difícil não constatar que existem poucos grupos como eles.

Os Rolling Stones têm a mitologia inultrapassável do seu lado. Os U2 a criação de grandes encenações rock. Mas quando se pensa em rock para multidões, capaz ainda de gerar sentido de pertença, como se fosse possível comunicar para cada um de nós, não existem muitos a fazê-lo como eles. Depois do lançamento do último álbum, e da dilatação do seu público nos últimos anos, muitos disseram que tinham capitulado perante os valores do mercado. Mas rotundamente, não.

O romantismo está intacto. Estão mais (auto)conscientes, claro. A inocência foi-se. Mas mantêm o alento do desafio. Há um sentido coreográfico diferente, envergam máscaras, recorrem a cabeçudos, existe teatralidade, mas essa é apenas uma outra maneira de mostrarem que existem muitas formas de aceder à verdade, seja lá o que isso for.

E essa é a grande lição à volta da nova digressão e do último álbum Reflektor (2013). Recriaram novos cenários, não para se camuflarem, mas para dessa forma poderem comunicar com autenticidade quem são. Continuam iguais, porque a intensidade é a mesma. Mas ampliaram o leque de possibilidades. Hoje um concerto deles não é apenas uma espiral épica. É também fisicalidade. São diferentes ritmos e climas ao longo da noite. Existe maior riqueza de opções.

Segundo a organização, terão estado 48 mil almas no recinto. Menos do que nas noites anteriores. Mas eram dos bons. Porque nem nos momentos em que o grupo foi resgatar algumas das canções mais difíceis de Reflektor vacilou. Começaram, precisamente, com o tema-título do álbum, com uma formação imponente em cena, mais de uma dezena de músicos em palco, reforçada por percussões e metais.

Seguiu-se Flashbulb eyes, também do quarto álbum, para depois arrebatarem com duas canções do registo inicial, Funeral (2004). Com Neighborhood#3 (power out) e Rebellion (lies) soltou-se uma energia que poucos conseguem expor assim, de forma desvairada, ritualística, com toda a gente gritar a plenos pulmões, mas ainda assim, singular.

O cantor Win Butler (voz, guitarra, piano) domina as atenções, comunicando com o público, por vezes em português – “esta é uma canção sobre a saudade”, haveria de dizer na introdução de The suburbs. Mas é justo que se diga que as individualidades se deixam imergir no conjunto, com a maior parte deles a desmultiplicar-se por vários instrumentos.

Integram todos o mesmo universo visual e musical. São uma verdadeira comunidade. E estão muito bem oleados, capazes de ultrapassar dificuldades técnicas com desembaraço, como no arranque de uma das canções, que acabaria por não ser tocada, para tudo ser esquecido de imediato com Neighborhood#1 (tunnels) ou No cars go, tocadas com nervo, emoção à flor da pele, por entre a sumptuosidade das orquestrações e dos ritmos desenfreados, gerando mais catarse.

Mas os Arcade Fire do mais recente álbum são capazes de outras coisas também. Há balanço físico, sensualidade, sobreposição de diferentes camadas, com o som menos saturado e mais espaçoso, como em We exist, It’s never over e Afterlife, ou ainda na mais antiga Sprawl II (mountains beyond mountains), com Régine Chassagne, na voz, a atribuir um colorido caleidoscópico à noite.

Pelo meio vemos Régine Chassagne no meio da multidão, disposta sobre uma plataforma, interagindo vocalmente com Win Butler, no palco, ou a entrada em cena dos gigantones, ou uma chuvada de confetti, promovendo momentos de desordem. Mas esse aparente caos acaba por desembocar em canções enlevadas, mas de complexidade estrutural, como se cada canção pudesse conter várias canções dentro de si, como Normal person ou Here comes the night time.

No fim, Wake up, palco e plateia unidos na mesma vontade de superação, gargantas gritando em uníssono, numa experiência de transcendência colectiva, mas ainda assim plenamente interna e íntima. Estava cumprido mais um concerto memorável dos Arcade Fire.

A neozelandesa Lorde acabou por cotar-se como a surpresa da noite. A cantora de apenas 17 anos sobrevive a qualquer leitura mais simplista. E ainda é mais nítido em concerto onde, praticamente sozinha (faz-se acompanhar de baterista e teclista), consegue conquistar, fazendo uso das suas capacidades vocais e da presença sóbria, suportada por uma sonoridade electrónica que contém qualquer coisa de cerimonioso.

Ao vivo a música é ainda mais esquelética, batidas electrónicas em câmara-lenta e arranjos nada ostensivos, sustentados pela grande pureza expressiva que a cantora emana. Por vezes o seu corpo parece recolher-se sobre si próprio, num gesto intimista, como se quisesse refugiar-se do público, mas a verdade é que na interpretação das canções do álbum Pure Heroine (2013) consegue tocar a multidão.

E depois existe também a forma como comunica, com uma seriedade desarmante. Às tantas gritou que os amigos Arcade Fire lhe ditam dito que os portugueses eram o melhor público que já tinham tido, mas verbalizado por ela pareceu justo e não um momento de bajulação.

A canção que lhe deu fama, Royals, foi recebida com efusividade, mas até foram temas como Easy ou A world alone, que foram mais vividos por um público que recebeu muito bem a proposta, nada óbvia, de Lorde.

Antes, já a música de António Variações tinha sido lembrada em palco, com vários vozes e grupos portugueses (Gisela João, Deolinda, Linda Martini, Rui Pregal da Cunha) a recriarem canções que ficaram no imaginário de todos, como Quero é viver, O corpo é que paga ou Estou além. Foi naturalmente um momento desequilibrado, com registos diferenciados, mas onde sobressaiu o clima de celebração à volta de uma das vozes mais carismáticas da cultura pop portuguesa.

Do inglês Ed Sheeran não reza a história. A aura de trovador delicodoce parece encantar algum público adolescente, mas não se entende o que estaria ali a fazer naquele alinhamento. A alma britânica foi salva pelos Wild Beasts, grupo que não tem uma grande expressão a nível de seguidores, mas que ao longo de quatro álbuns nunca comprometeu, com canções rock de encaixe pop, marcadas pelos duelos vocais ambíguos de Hayden Thorpe e Tom Fleming.

Entre a assistência encontravam-se membros dos Arcade Fire, talvez em processo de aquecimento para o grande concerto que iria marcar a penúltima noite do Rock In Rio, que encerrra este domingo com Justin Timberlake.

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