Há uma sex party numa praia em Cannes. E o amor?

Depardieu como corpo cuja história passa agora a ser contada também pelo cinema de Ferrara. Jacqueline Bisset a querer fugir do cheiro desse homem. Eles são e não são Dominique Strauss-Kahn e Anne Sinclair em Welcome to New York. Um filme brutal e triste sobre… o amor.

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A Nikki beach na Croisette de Cannes onde foi montada a tenda onde foi projectado Welcome to New York REUTERS/Eric Gaillard
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Jacqueline Bisset a sair da tenda onde foi mostrado o filme de Abel Ferrara REUTERS/Eric Gaillard
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O cartaz do filme AFP PHOTO / VALERY HACHE
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Abel Ferrara a chegar ao sítio onde iria apresentar Welcome to New York REUTERS/Eric Gaillard
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Gérard Depardieu e Jacqueline Bisset REUTERS/Eric Gaillard
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Gérard Depardieu e Jacqueline Bisset no filme
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Gérard Depardieu em Welcome to New York

O presente do cinema já é assim: uma tenda de praia, uma banda sonora vinda do exterior, tecno a encher de vazio a noite que ainda não é de Verão ou Aloe Blacc a pedir “I need a dollar dollar, a dollar is what I need hey hey” - um dum lado, outro do outro, uma mix espontânea made in Croisette a servir de banda sonora forçada a um filme que se vê não numa sala de cinema mas dentro de uma barraca.

O barulho do mar na areia já nem acrescenta poesia à impressão distópica, não sacode o sabor a noite de fim. Esta experiência da decadência na Nikki Beach de Cannes serve, contudo, às mil maravilhas o cinema de Abel Ferrara, cujo filme anterior, aliás, 4.44, Último Dia na Terra, era sobre o fim do mundo. É do novo Ferrara que se fala aqui.

O ecrã dentro da tenda oferece de borla aos jornalistas convidados video on demand. Aloe Blacc, Gnarls Barkley e o tecno, que saem das outras barracas na Croisette, vão acompanhar como ruído de feira Welcome to New York, filme que passa com som a rebentar para poder existir no meio da febre de sábado à noite.

À mesma hora, os espectadores franceses podiam ver o filme nos seus ecrãs caseiros, por sete euros. É assim, com o video on demand, que a distribuidora Wild Bunch escolhe distribuir o filme – uma produção americana – em França, contornando a obrigatoriedade legal francesa de ter de passar por sala antes de chegar às plataformas online que também disponibilizam Welcome to New York em outros territórios.

A estratégia é chegar num curto espaço de tempo ao maior número de espectadores. E é assim que enquanto decorre o Festival de Cannes se encena uma sessão especial, como se fosse numa sala de cinema mas afinal é apenas uma tenda de praia iluminada para fazer sombras, que se encena um lançamento para pouco mais de uma centena de jornalistas, seguido de um encontro com o realizador e os actores, Gérard Depardieu e Jacqueline Bisset. Que haverão de falar sempre com ruído de discoteca em fundo.

Para já há uma “sex party” dentro da tenda. O som do exterior abafa o ronco de animal exaurido de Depardieu quando este tenta enfiar o pénis na boca de uma empregada de hotel forçando-a com um “Sabe quem eu sou?”. Ele é Devereaux, homem que chegou ao topo de uma instituição financeira e a partir daqui só pode ser candidato presidencial em França. Ele é uma personagem de ficção a partir de Dominique Strauss-Kahn, o antigo líder do FMI acusado em Maio de 2011 de violar uma empregada de quarto de um hotel nova-iorquino.

Sexo a três, sexo em grupo, gelado, champanhe, os órgãos sexuais das call girls russas expostos e Depardieu a ensaiar até palavras na língua das suas compatriotas (desde 2013 que é também cidadão do país de Putin). Apesar de protegido com o seu robe de chambre dá a ver um corpo de dimensão “porcina”, como escreveu um jornal francês que elogiou, aliás, a coragem do actor.

Quando mais tarde Devereaux é preso no aeroporto, onde apanhava o avião de regresso a Paris, e inicia a sua caminhada judicial, sendo despojado dos seus objectos pessoais e obrigado a mostrar que não há nada escondido no corpo, a nudez de Gérard é aí integral. Tal como o é a fria tristeza de Devereaux, o seu desprezo e desinteresse pelos outros, a sua solidão.

É impossível que não se interponha nesse momento nas imagens a memória do jovem Depardieu nu entre os arranha-céus de Nova Iorque no Adeus Macho, de Marco Ferreri (1978), que foi a plenitude de uma sensualidade. Dessa forma, não é só Devereaux que é uma personagem do universo de Abel Ferrara, Depardieu também passa a sê-lo. Uma das coisas mais bonitas deste filme de uma solidão extrema é ele documentar o encontro entre um realizador e um actor gigantesco e acrescentar algo de essencial à história desse corpo.

Sobre as sequências de sexo, na primeira parte do filme, o actor explica no encontro com os jornalistas porque é que não há porno ali. O gesto vale tudo: levanta o braço como um falo firme, diz que não há nada disso em Welcome to New York. O que não torna as coisas mais fáceis para um actor, assegura. Há qualquer coisa de “triste e de violento”, explica, nisso de simular o sexo e fingir prazer. É feliz o porno, então. Bernardo Bertolucci terá sido um dos primeiros a ver o filme, e sobre essas cenas terá dito: “Parece um filme de Andy Warhol” – ou seja, é aquilo que é e apenas isso.

Depardieu dá a entender, ainda assim, que foram essas cenas a razão por que o filme não foi apresentado de forma mais oficial em Cannes: os programadores pediram cortes a Ferrara, que se recusou a fazê-los. Há mais do que ironia quando se refere a Cannes, concretamente ao delegado geral do festival, Thierry Fremaux, atirando com a coragem de outros tempos em que filmes de Marco Ferreri, Antonioni, Duras ou Pialat escandalizaram e puderam ser apupados.

Homens suicidários
Para o “seu” Devereaux, neste filme com “poder, sexo, dinheiro” e um acrescento “de luxúria, o sentimento de irresponsabilidade”, condimentos de uma “tragédia shakespeariana”, Gérard, raciocínio, memória, cultura tão delicados quanto o seu corpo pode ser recebido como ofensa brutal, encontra uma família nos “homens suicidários” de Peter Handke.

“É muito difícil estar num casal e ter pulsões. Devereaux sabe que está doente mas não quer ser tratado, marimba-se para tudo, o que é profundamente humano e profundamente terrível, também”. Ou seja, a diferença entre o Harvey Keitel de Polícia sem Lei (1992) e o Devereaux que se colocou fora da lei, da moral e, se calhar, da vida, é que os uivos do primeiro clamam pela salvação. Deveraux entre os prédios de Nova Iorque resume-se assim: era um jovem idealista, quando chegou ao banco compreendeu que o “idealismo é um negócio” como outro qualquer, e deixou de sentir a sua vida, que apenas é uma coisa a acontecer, e deixou de sentir pelos outros. “No redemption for me”.  

Como numa batalha
Há um casal. Entra então Simone Devereaux, aliás Jacqueline Bisset – e, é claro, Anne Sinclair, a ex-jornalista francesa que se casou com Dominique Strauss-Kahn. Voa de Paris para Nova Iorque, a tempo de encontrar casa para o marido a quem foi decretada prisão domiciliária enquanto aguarda julgamento. Como o filme explica numa legenda inicial, todas as fases públicas do processo, tal como foram relatadas e noticiadas pela imprensa, serviram de GPS à primeira parte do filme. Já o que se passou no interior daquele apartamento nova-iorquino (que é na realidade, revela o Le Monde, o mesmo apartamento que Sinclair alugou para ela e para Dominique) é a pergunta que todos fazem ou que todos se fizeram e que ninguém pode responder.

Ferrara pediu então aos actores (empurrou-os com uma determinação violenta, disse mesmo Bisset) que largassem o argumento e mergulhassem na improvisação, reinventando a possibilidade do amor para aquele casal. “Há um mistério neste casal, e o interesse é perceber esse mistério”, avança Depardieu. “Para nós foi como um happening de Julian Beck dos anos 60”, com o Living Theater, “improvisando a partir de uma situação. A questão nunca foi, para nós, saber se eu era de facto Strauss-Kahn e se Jacqueline era Anne Sinclair, mas improvisar a partir dessa possibilidade.” “Sentimo-nos como numa batalha, com o tempo a verdade vai vindo ao de cima, há verdades que saem de nós”, continua.

A verdade de Jacqueline Bisset: “ Às vezes parecia que eu estava a falar da minha própria vida, com as minhas várias histórias com homens complicados”, assume. Simone não quer que o marido lhe toque, quer deixar de sentir o cheiro de Devereaux, que é aquilo que a impede de cortar com esse “homem-criança” e que a aprisiona – inquietante a forma como a actriz fala da personagem do marido; há semelhanças na forma como Anne Sinclair falou sobre Dominique numa recente emissão do programa da televisão francesa Un Jour, Un Destin.

E o amor, Jacqueline? “Mesmo com o nosso coração partido, nunca estamos no nosso ponto mais baixo”, diz. Os seus olhos vibram no chiaroscuro de uma tenda de Cannes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 

 

 
 

 

 
 

 

 
 

 

 
 

 

 
 

 

 
 

 

 
 

 

 

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