Futurismo reciclado

O ciclo que começa na terça-feira na Casa da Música é uma proposta de programação em especial relevante, não só pela rara oportunidade de ouvir várias das obras como, partindo do legado histórico do futurismo italiano, permite aproximações à música que se faz hoje.

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Imagem do filme de Ferdinand Léger Dr
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Luigi Russolo que se dedicou à criação de novos instrumentos dr

Ao longo de 2013 tem-se assinalado amplamente o centenário de A Sagração da Primavera, consagrada como a obra mais emblemática dos modernismos dos primeiros anos do século XX, anteriores à deflagração da carnificina sem precedentes que foi a I Grande Guerra.

Entre esses modernismos, o futurismo tem algumas características que importa em especial assinalar, porque foi aquele que mais manifestamente se afirmou como “lógica de vanguarda”, fazendo tábua rasa do passado, exaltando o século nascente e em particular a identificação com a maquinaria e a velocidade suscitada pelos novos meios técnicos, mas também, aspecto tristemente premonitório, glorificando mesmo a guerra – que estava de facto para vir.

Quando se diz que o futurismo foi das diversas correntes modernistas que então se afirmavam a que mais “manifestamente” se afirmou, a caracterização é literal: a 20 de Fevereiro de 1909, Filippo Marinetti publicou no Le Figaro, o Manifesto Futurista, em termos de proclamação modelo de tantas outras rupturas e vanguardas sucessivas: o Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros – de resto inscrito na irradiação do futurismo -, o Manifesto do Surrealismo, etc., etc. Por exemplo, nestes termos, de entre os 20 itens do Manifesto Futurista: “Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia. (...) Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academia de toda natureza.”

As consequências mais marcantes do futurismo, não apenas enquanto movimento estético mas também proclamação global, foram de duas ordens, ambas “revolucionárias”, mas de sinal oposto. Por um lado, ardente defensor de um nacionalismo italiano – o que aliás está patente no Manifesto – Marinetti viria também a ser um dos ideólogos do fascismo, no seu primeiro momento de “nacionalismo revolucionário” e anti-institucional, embora triste e paradoxalmente tenha passado o seu período final acomodado nas bafientas instituições tradicionais como senador do reino. Por outro lado, o futurismo teve uma influência marcante na Rússia e mormente na efervescência cultural que se seguiu à revolução soviética, o expoente maior sendo Maiakovski, que viria a conhecer o trágico destino do suicídio, no momento em que estava acossado pelo dirigismo cultural e político do totalitarismo estalinista.

No campo musical, o paladino do futurismo foi Luigi Russolo, que publicou em 1913 (mais outro caso de centenário) A Arte dos Ruídos, tendo-se mesmo dedicado à invenção de novos instrumentos, o que de resto faz dele um precursor da electrónica. Mas o relevo da influência musical do futurismo manifestou-se fundamentalmente de outros modos, que se pode descobrir no ciclo da Casa da Música.

No quadro do ano dedicado à Itália, inicia-se o ciclo “Futurismus” (no plural), ao longo de quatro concertos, na terça-feira, sábado, domingo e terça. É uma proposta de programação do maior relevo. É verdadeiramente raro poder ouvir agregadas num ciclo quase todas as obras marcadas pelo deslumbramento futurista pela velocidade, pela exaltação da tecnologia e pela percussão considerada autonomamente: duas obras soviéticas, que são As Fundições do Aço, de Aleksandr Mosolov, e o Pas d’acier, de Prokofiev, o Pacific 231, de Honneger, o Ostinato Pianissimo, de Henry Cowell, a Ionisation, de Varèse, e o Ballet mécanique, de Georges Antheil, este sendo complementado pela projecção do filme homónimo de Ferdinand Léger, tal como foi originalmente concebido. Estas três últimas peças no derradeiro concerto com o Drumming são todas para conjunto de percussão – ou com pianos usados em termos percutivos no caso da de Antheil. Obras, como por exemplo as de Mosolov e Honneger, sempre são citadas nas histórias da música mas são pouquíssimas as oportunidades de as ouvir em concerto.

Única ressalva, e de relevo, o tal “quase”: falta a mais genial obra em que há uma influência futurista e uma das mais marcantes do século passado, o Amériques de Varèse, mas além das extremas dificuldades em montar uma interpretação desta peça que exige uma gigantesca orquestra de 142 elementos – e por isso as execuções são tão escassas -, também há que reconhecer que se num dos seus aspectos mais impressivos, a escrita da percussão (e o uso de sirenes), ela concretiza as proclamações de Russolo, Amériques é uma obra de tal modo visionária que a sua crucial importância existe muito para além da influência do futurismo.

Mas há ainda dois outros aspectos salientes no ciclo: a estreia, no domingo, de uma obra encomendada a Carlos Caires, sobre poesia futurista portuguesa, e a inclusão no concerto de hoje, em que aliás inusitadamente se junta ao Remix uma orquestra de baixos e guitarras eléctricas, de obras de dois compositores contemporâneos, Oscar Bianchi e Wolfgang Mitterer – e este é um aspecto da programação que coloca interessantes e importantes questões. O encenador e programador Antoine Gindt, citando estes dois compositores e outros como Bernhard Lang, François Sarhan ou o malogrado Fausto Romitelli, colocou uma curiosa pergunta: este “arquipélago” – chamemos-lhe assim – será uma “zona de margens, um no music’s land ou o futuro da composição pós-pós-moderna”?

Reciclagem de materiais – é assaz interessante notar como aqueles que na cena pop/rock foram mais marcados pela música contemporânea, os Pink Floyd, Frank Zappa e Robert Wyatt, surgem agora por sua vez como influências patentes em compositores como Bianchi,  Mitterer e outros, até mesmo directamente citados, tal como há por vezes o recurso a DJ -, uso intensivo de instrumentos electrificados, um marcado acento na concepção de impacto sonoro, muitas vezes “brutalista” e “bruitiste” – de bruit/ruído, como no Futurismo histórico.

Se a noção de “pós-modernidade” tem como inerente o colapso das grandes narrativas que sustentavam um devir da História, no sentido de um futuro e de um fim ou finalidade, “futuro da composição pós-pós-moderna” é um contras-senso – e nesse sentido ainda menos têm a ver com qualquer resquício de futurismo. Mas é um facto que este arquipélago recente, surgido já décadas depois da declaração da pós-modernidade, em música e nas outras artes – isto é, o colapso da ideia de “vanguarda”, a reconsideração de uma relação fecunda com a tradição e a revalorização da “expressividade” -, não só se posiciona além do estrito espaço dos instrumentos musicais admitidos, como exalta o que mesmo no quadro canónico da composição pode afinal também ser considerado excrescência ou “ruído”.

O confronto das diversas perspectivas neste ciclo da Casa da Música anuncia-se frutuoso, talvez mesmo apaixonante, numa proposta de programação marcante mesmo fora do âmbito das instituições portuguesas.
 

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