Fazer música como gesto colectivo

Foi um maestro excepcional e isso é dizer pouco sobre tudo o que fez em termos musicais.

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Claudio Abbado foi o indirecto sucessor de Arturo Toscanini Marco Caselli Nirmal / Orchestra Mozart

A morte de Claudio Abbado é uma perda imensa. Sabíamo-lo doente, mas, por mais do que uma vez, ele tinha recuperado e regressado aos palcos, por vezes, com enorme sacrifício pessoal.

Foi um maestro excepcional. No entanto, isso é dizer pouco sobre tudo o que ele fez em termos musicais. Recorde-se que entre os cargos que ocupou esteve a direcção do Scala de Milão (para onde foi nomeado com apenas 35 anos), da Orquestra Sinfónica de Londres, da Ópera e Filarmónica de Viena e da Filarmónica de Berlim. Mas há também que recordar, e de que maneira, que fundou a Orquestra de Jovens da União Europeia e – ainda mais importante –, depois, a Orquestra de Jovens Gustav Mahler, que reunia numa Europa ainda dividida jovens de ambos os lados da “Cortina de Ferro”, à qual muito se dedicou. E recordar ainda que, nos últimos anos, o seu maior foco de interesse foi a Orquestra do Festival de Lucerna, na Suíça, caso único em que prestigiados músicos, mesmo solistas, que nunca tinham sido membros de orquestras, aceitaram integrar.

Claudio Abbado foi um excepcional intérprete de Verdi, sem dúvida alguma, o maior depois de Toscanini. Entre as suas máximas gravações – e, aliás, das máximas de toda discografia verdiana –, encontram-se o MacBeth e o Simão Boccanegra, que tinham ambas sido encenadas por Giorgio Strehler. Sendo ainda especialmente de lamentar que nunca tenha sido editado, senão nas marcas paralelas e nunca em DVD, o espectáculo histórico que foi a sua direcção de Don Carlo, com encenação de Luca Ronconi, no Scala, em Janeiro de 1977, espectáculo que, no entanto, foi transmitido pela Eurovisão.

Claudio Abbado foi também um grande intérprete de Rossini, sendo especialmente marcantes os seus registos de O Barbeiro de Sevilha e Il Viaggio a Reims.

Mas, atenção, ele esteve longe de se restringir ao reportório italiano. Tinha a cultura da Europa Central e foi grande intérprete da tradição sinfónica austro-alemã, de Beethoven, Schubert, Brahms e sobretudo Mahler.

E mais: foi um dedicado intérprete de música contemporânea. No seu primeiro concerto com a Orquestra Sinfónica de Londres, dirigiu não só o Concerto para piano n.º 1, de Brahms – com o seu cúmplice de eleição, Maurizio Pollini –, e Tchaikovsky, como também uma obra do compositor contemporâneo britânico Brian Ferneyhough.

No final dos anos 60, numa época política e socialmente conturbada, Abbado, já director do Scala, foi fazer concertos para fábricas juntamente com o compositor Luigi Nono, com quem teve também uma relação electiva, e com Pollini.

Devo-lhe, entre outros momentos, três das maiores emoções musicais da minha vida: o citado Viaggio a Reims, de Rossini; o Wozzeck, de Alban Berg, com encenação de Peter Stein, no Festival de Salzburgo; e, já depois da sua paragem por motivos de saúde, o Concerto em sol, de Ravel, com Martha Argerich, no Festival de Edimburgo.

Claudio Abbado foi o indirecto sucessor de Arturo Toscanini. Aliás, é interessante notar como as interpretações de um e de outro de La mer, de Debussy, são as referências maiores. Mas, muito jovem, Abbado tinha visto o velho maestro ensaiar no Scala, experiência que o marcou, porque tornou-se sempre no oposto do estilo autoritário de Toscanini.

Muitos maestros, por vezes, parece que exercem para fazer brilhar ainda mais o seu ego. Claudio Abbado tinha um único fim: fazer música como gesto colectivo.

Depoimento recolhido por Sérgio C. Andrade
 
 
 
 
 

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