Programar em pequenas cidades é aprender a tocar todos os instrumentos

Estarreja, entre Porto e Aveiro, é um exemplo de uma programação multidisciplinar regular e de um município que percebe a importância de contratar quem percebe do assunto.

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Nos últimos oito anos, a sala de 500 lugares e o bar receberam 2670 eventos e 228.657 espectadores Bárbara Raquel Moreira

Numa grande cidade, com vários equipamentos culturais espalhados pelo território, é possível definir linhas de programação para áreas artísticas específicas. Em cada local, ter uma arte sem muitas misturas. Em cidades de pequena dimensão não é bem assim. Os espaços culturais não abundam e as várias faces da cultura têm de caber num edifício que habitualmente funciona como o centro nevrálgico de toda a actividade.

“Pela ausência de equipamentos culturais direccionados para determinados públicos, temos de ter todas as possibilidades num só equipamento. Temos de ser mais abertos, trabalhar com a comunidade, não há como fugir a isso. No fundo, é essa a função de um teatro municipal”, diz Fátima Alçada, directora artística do Centro de Arte de Ovar e responsável pela programação desse município com cerca de 55.300 habitantes – função que ocupa depois de ter saído do Cineteatro de Estarreja em Novembro.

A metáfora encaixa como uma luva. “Em cidades de pequena dimensão, temos de tocar todos os instrumentos”. Foi o que lhe aconteceu em Estarreja, onde esteve cerca de dois anos e meio. Quando chegou a um pequeno município com cerca de 27 mil habitantes e uma jovem cidade (está a comemorar o oitavo aniversário desse estatuto), tentou manter e consolidar o trabalho que estava a ser desenvolvido pelo anterior programador cultural. Definiu uma programação o mais abrangente possível para um único espaço, criou um grupo de teatro com 10 adolescentes, com idades entre os 13 e os 18 anos, que ensaia regularmente e apresenta uma peça todos os anos a partir de um texto de autores contemporâneos – a última foi em Abril com a representação de Ester de Rui Catalão.

Fátima Alçada foi assistente de programação da Porto Capital Europeia da Cultura 2001, durante três anos, e do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, onde também coordenou o serviço educativo, de Fevereiro de 2004 a Dezembro de 2009. Conhece os dois lados, programar em pequenos e grandes territórios, e a experiência diz-lhe que o envolvimento é maior em pequenas comunidades. “As pessoas estão, à partida, mais disponíveis e o trabalho com a comunidade pode ser potenciado”.

Em Estarreja, programava um único local, em Ovar está a desenvolver uma política cultural de cidade, precisamente o caminho que Estarreja quer pisar em 2014. Além da produção nacional, e mesmo internacional, que faz parte do circuito, na sua opinião, é fundamental deixar marcas no terreno onde se trabalha. “Em Ovar, queremos convidar criadores para trabalharem com grupos já formados, ou não, e criar objectos artísticos a partir deste território. Trabalhar o local, chamando pessoas de outras latitudes, com outras experiências, com um mar de trabalho já feito, para criar objectos únicos artísticos”.

Fátima Alçada passou o testemunho tranquilamente em Estarreja que está prestes a contratar um novo programador cultural. O município sabe que ter no seu território quem entende do assunto faz toda a diferença. “Percebe que para fazer a programação de um espaço cultural é preciso ter um programador, um aspecto importante e que foi sempre cuidado em Estarreja. E isso é sabedoria”. “O que surpreende é que, apesar das dificuldades orçamentais, Estarreja consegue manter a regularidade e a qualidade cultural, fazendo alguns ajustes e, neste momento, consegue ser conhecida e falada pela actividade cultural”, acrescenta. Uma marca conquistada pela cultura. “Muita gente só descobriu Estarreja pelo cineteatro. Estarreja consegue atrair pessoas de fora pela questão cultural”. 

Partir a redoma para criar elos

Na segunda-feira, a Câmara de Estarreja apresentou uma nova estratégia para a política cultural assente exactamente num trabalho articulado entre os vários espaços de que dispõe – cineteatro, Casa-Museu Egas Moniz, biblioteca municipal, Casa da Cultura. Fátima Alçada concorda com esse rumo numa cidade onde cultura é vista como sinónimo de desenvolvimento económico e social. O presidente da câmara, Diamantino Sabina (PSD/CDS-PP), assume essa vontade. “Queremos rebentar com a redoma e criar elos entre os agentes culturais”, diz. Para que ninguém trabalhe de costas voltadas, para criar uma rede articulada. A criação do Laboratório de Aprendizagem Criativa (LAC), a contratação de um novo programador cultural, o trabalho articulado entre vários espaços, uma oferta transversal, fazem parte dessa estratégia.

O LAC nasce para rentabilizar recursos. Segundo o vereador da Cultura da Câmara de Estarreja, João Alegria, será “um serviço transversal aos diversos equipamentos culturais” para que o serviço educativo do município ganhe “uma nova dimensão, dinâmica e abrangência”. No LAC, cabem oficinas de teatro e de leitura, segredos para descobrir na casa do Prémio Nobel da Medicina, uma história de uma gota de água encenada por Madalena Victorino e interpretada por Paulo Duarte, curtas-metragens para crianças seguidas de oficinas temáticas, e a 23 de Janeiro, Photomaton de Fernando Mota, ou melhor, instrumentos improváveis criados por objectos inusitados.

A história do Cineteatro de Estarreja, o coração da cultura em Estarreja, não se conta apenas em números. Mas são eles que confirmam que o espaço é um exemplo de programação cultural regular entre Porto e Aveiro. Nos últimos oito anos, a sala de 500 lugares e o bar receberam 2670 eventos culturais – cinema, teatro, dança, workshops – e 228.657 espectadores. O espaço que foi fundado em 1950, que viria a fechar portas em 1992 e reabrir em Junho de 2005, recebe, nos seus Concertos Íntimos, Mafalda Veiga a 18 de Janeiro, A Naifa a 22 de Março e Luís Represas a 10 de Maio. Multiplex do coreógrafo Rui Horta é apresentado esta sexta-feira, a peça de teatro Isto é que Me Dói de José Raposo e Sara Barradas a 1 de Fevereiro e a Glenn Miller Orchestra a 21. Commedia Gourmet de Eduardo Madeira a 8 de Março e o espectáculo de dança do Conservatório de Música da Jobra a 15.

Há dias e noites em que a sala do cineteatro fica praticamente lotada. Mesmo assim, o termo sustentabilidade não surge nos discursos dos responsáveis políticos. O objectivo não é ganhar dinheiro, é trazer cultura a uma pequena cidade. E os preços dos bilhetes não são elevados. Um concerto não ultrapassa os 15 euros e as sessões de cinema, às sextas e domingos à noite, custam 3,5 euros. “Temos preços baratinhos, para não estarmos muito distantes do que se faz nas grandes salas dos circuitos de cinema”, refere João Alegria. Em 2014, na programação do cineteatro serão gastos 120 mil euros, como aconteceu em 2013.
 
 
 
 

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