“Essa coisa de vender a esperança num mundo melhor é fundamental”

Abdulai Sila, o autor de Eterna Paixão , obra classificada como primeiro romance guineense, esteve recentemente em Portugal para a apresentação do seu primeiro texto teatral As Orações de Mansata , que ainda pode ser vista hoje no Espaço Montemuro.

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“Em Bissau, nada é fácil mas em Bissau tudo dá um prazer especial.” Rui Gaudêncio

Na linha do tempo da Guiné-Bissau pós-independente, existe um antes e um depois 1994, com as primeiras eleições livres; e também um antes e um depois 1998 quando uma Junta Militar unida contra o Presidente Nino Vieira acabou a combater as tropas estrangeiras da Guiné-Conacri e Senegal estacionadas na capital. A guerra civil, de um ano, abriu feridas do passado e deixou marcas.

Na vida de Abdulai Sila – que se confunde com a dos livros no seu país – também 1994 e 1998 são marcos. Em 1994, o engenheiro electrotécnico guineense, formado em Dresden, publica o Eterna Paixão, considerado o primeiro romance guineense editado. Abdulai Sila publicou no Brasil, França e Cabo Verde e foi eleito, este ano, presidente da Associação de Escritores da Guiné-Bissau.

Ao mesmo tempo, fez carreira na área das Tecnologias de Informação, sendo hoje o presidente da Eguitel Comunicações, empresa privada de telecomunicações que opera em Bissau desde 2001. Também em 1994, o escritor, que viria a ser distinguido com uma condecoração do Estado francês este ano, é um dos três fundadores da Ku Si Mon, primeira editora privada que, na euforia da abertura política com as primeiras eleições na Guiné-Bissau e o fim da censura, editou mais de 20 livros.

“Em três anos publicámos mais do que nos 30 anos antes” na Guiné-Bissau, diz Sila sobre os livros que eram escritos mesmo quando não podiam ser publicados, e o foram em catadupa até 1998, quando a sede da editora no bairro da Ajuda em Bissau foi bombardeada com um obus da Junta Militar contra as tropas senegalesas que controlavam Bissau.

Sila e os seus dois sócios – o professor universitário e director do jornal Kansaré Fafali Koudawo e a psicóloga e escritora Teresa Montenegro – perderam na altura todo o equipamento e manuscritos.
Juntaram forças e em 2004, publicam Contos da Cor do Tempo, livro de contos, para relançar a editora e celebrar os seus dez anos. Desde então, o ritmo a que foi crescendo o catálogo da editora só foi interrompido em 1998, pelo som dos tiros da guerra civil.

A primeira peça já em palco
A sua primeira obra de teatro – e quinto livro –  As Orações de Mansata (2007), inspirada em Macbeth de Shakespeare, foi encenada por António Augusto Barros, numa produção conjunta da Cena Lusófona e Escola da Noite, de Coimbra, que junta no elenco actores amadores e profissionais dos países lusófonos. Esta adaptação da luta de poder de Macbeth à realidade política da Guiné-Bissau pode ser vista hoje à noite no Espaço Montemuro em Campo Benfeito, Castro Daire, etapa final de uma itinerância em Portugal que começou em Braga e seguiu depois para Évora, antes de viajar, no próximo ano, para o Brasil, Espanha e Angola. Bissau receberá em Maio de 2014, no palco Centro Cultural Francês em Bissau, a peça que abre uma janela sobre “esse mal” – da luta pelo poder e da violência na Guiné-Bissau – “com proporções que não previsíveis” (como em Macbeth, a violência atinge proporções que eram, no início da peça, inimagináveis).

O seu segundo texto teatral, Dois Tiros e Uma Gargalhada, publicado em Maio deste ano em Bissau, pode ser lido como se não tivesse caído o pano sobre As Orações de Mansata ou as obras anteriores de Abdulai Sila.
Se Eterna Paixão conta a sobre a euforia e a desilusão que se seguem à independência, o segundo romance A Última Tragédia, escrito dez anos antes e proibido pela censura, é publicado em 1995, ainda alude ao período colonial, no caminho percorrido por uma adolescente Ndani, que simboliza o peso – ou a maldição – de que têm de se libertar os colonizados conscientes dos seus direitos. O terceiro romance Mistida, de 1997, já é um retrato dos anos que antecedem o conflito de 1998.

E se As Orações de Mansata são uma sátira – um quadro do ridículo (e violento) a que podem chegar as lutas de poder que se perpetuam em Bissau – Dois Tiros e Uma Gargalhada (2013), o segundo texto dramático do autor pode ser lido como uma continuação do primeiro ou um virar de página, na forma como introduz esperança porque, como diz o autor, “chegou o momento de abafar o som dos tiros com uma gargalhada”.

 Reinventar os ideais
Abdulai Sila nasceu em 1958, em Catio, no Sul da Guiné, “lá onde as pessoas falam de Amílcar Cabral como de um deus”. A sua imagem de líder que “fez acordar muita gente” para a crença de “um amanhã melhor” continua “muito longe”. “Os jovens acreditam, mas a realidade faz com que essa ideia pareça um mito.” E continua: “Quando se lhes pergunta ‘quem é o teu ídolo’, respondem: Messi ou Ronaldo” e não Amílcar.
É preciso repor esses ideais, da mesma maneira que é preciso “rever a forma violenta” como se acede ao poder em Bissau, diz o escritor.

Em Dois Tiros e Uma Gargalhada, escreve no posfácio do livro Laura Padilha, professora emérita da Universidade Federal Fluminense no Brasil, regressam Amambarka do livro Mistida de 1997 e a personagem Kemeburema, a figura que abre As Orações de Mansata e que nela é apresentada como alguém capaz de levar a nação a alvorecer e a renascer “das cinzas para se tornar no mais belo jardim do mundo”. 
O autor empenhado “nessa coisa de vender a esperança num mundo melhor” enquanto “tarefa fundamental”, como disse numa entrevista ao PÚBLICO, acredita que chegou o momento de abafar o mal (o som dos tiros) com um bem maior (uma gargalhada), como se os livros tomassem o lugar do sonho de Amílcar Cabral e mostrassem a imagem desse mundo melhor a alcançar.

Pintar a Guiné como um paraíso
“O que me inspira é a situação na Guiné-Bissau mas eu tento ir além daquilo que é temporário. As manifestações violentas têm que ser colocadas no seu lugar. A Guiné-Bissau é muito mais do que isso.” E a mensagem? “Pôr o cidadão a olhar para a frente. E essa imagem tem de ser pintada como um paraíso.”
A solidariedade dos tempos da luta de independência deve ser, por outro lado, reinventada, para se acabar com absurdos e abusos. “Um conselheiro da presidência ou da chefia do Governo ganha 20 vezes mais do que um professor que, muitas vezes, não têm onde se sentar”, exemplifica. “Há pessoas na Guiné-Bissau que têm mais luxos do que as pessoas nos países desenvolvidos. A maioria quer e não tem uma escola com um professor ou assistência médica para os filhos. Não tenho outra forma de caracterizar isto a não ser com a palavra ‘miséria’.”

Abdulai Sila tinha 16 anos quando em 1973 foi declarada a proclamação do Estado da Guiné-Bissau. “Onde falhámos?”, questiona-se o escritor, que fez parte dessa geração e participou depois nas campanhas de alfabetização. Seguiu-se o curso na Alemanha de Leste e o regresso a Bissau, onde começou a escrever nos anos 1980 mas só a publicar quando foi possível.Não foram tempos fáceis, diz Sila. “Em Bissau, nada é fácil mas em Bissau tudo dá um prazer especial.”
Como agora, quando a Ku Si Mon (que actualmente publica dois a três livros por ano) promove novos e jovens talentos, “para trazer o livro para o pé das massas” e desmontar a ideia de que “só gente ligada ao partido, lá no topo, ligada ao aparelho do Estado”, escreve e publica.

A redenção nos livros
O país vive um estilhaço de paz em que convivem os militares (quem concentra o poder real), o governo de transição (até à realização de eleições ainda sem data), e uma sociedade civil emergente que tenta alertar para uma (até aqui) crescente influência dos narcotraficantes que exploram oportunidades num país mergulhado na incerteza. Mas a Guiné-Bissau vive também “um autêntico boom” de uma nova geração que escreve e procura publicar.
Quando publicam, transmitem esse potencial aos outros jovens, e quebram “esse mito de que o livro pertence a uma elite”. “Através do livro, contribuímos para uma mudança de atitude.”

Antes do romance policial No Palácio do Governador, publicado em 2012 pelos dois mais jovens autores da Guiné-Bissau (Ildovil Silva e Iramã Sadjo), outro jovem autor, Marinho de Pina, publicou uma colectânea de contos na Ku Si Mon. Recentemente, a editora também criou o primeiro prémio literário do país, com o apoio do Centro Cultural Brasileiro.
Sobre Portugal – Abdulai Sila esteve até ao último momento sem saber se poderia assistir à estreia da sua peça em Braga pela demora na aprovação do visto – diz que muitas vezes “a crise” tem sido “uma desculpa” para instituições públicas não se aventurarem a apoiar projectos culturais. “Muitas coisas acontecem mesmo sem recursos. Não quero fazer críticas. Apenas apontar factos.”

E os factos? “Na realidade, [nós, escritores e editores] podemos contar com dois centros culturais em Bissau que fazem muito mais do que o Governo.” O Centro Cultural Brasileiro e o Centro Cultural Francês onde, por ocasião da festa nacional francesa, a 14 de Julho deste ano, Abdulai Sila foi condecorado com o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras que distingue e reconhece “personalidades pelas suas criações no domínio artístico e literário e pelo contributo para o florescimento da cultura em França e no mundo”.             

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