Esopo, Berliner, Sophia e Florbela

A Cosac Naify habituou-nos à edição de livros como objectos de sonho, coisas de pousar nas mesas, para se verem por completo, e não para se esconderem em estantes estreitas, vistos pela estreiteza da lombada, tão pouca para explicar o total de cada trabalho.

Em viagem a São Paulo, trouxeram-me à mão a edição das fábulas completas de Esopo e, mais uma vez, o primeiro choque é com a textura da capa, que parece uma pele, o papel, a impressão a duas cores, a arrumação cuidada do texto e, sobretudo, a belíssima colecção de ilustrações de Eduardo Berliner.

Cobiçamos imediatamente, uma a uma, todas as ilustrações deste homem. De gesto algo rápido, são desenhos sujos que nunca impedem a definição das formas e uma impressionante elegância. Eduardo Berliner é um elegante destemido, daqueles que podem abordar a tragédia que são as fábulas de Esopo, evidenciando horrores, sem perder um requinte inusitado. É perfeito.

Esopo é um desses tesouros do inusitado. Feito de uma inteligência clarividente, disfarçado de simplicidade. As suas fábulas são críticas mordazes infligidas por quase graças. Ficamos meio enganados com a sua meninice, como se estivéssemos a ler às crianças. E talvez devêssemos ler às crianças mais espertas o que aqui se conta, para lidarem com a ingenuidade de outra forma. Gosto muito desta fábula do urso e da raposa:

“Um urso dizia todo orgulhoso que era amigo dos homens, porque não comia cadáveres. Então, a raposa lhe disse: Quem dera você esquartejasse cadáveres e não gente viva!”

Por algum motivo, faz-me lembrar aquele poema de Sophia que diz: “As pessoas sensíveis não são capazes / de matar galinhas / porém são capazes / de comer galinhas.”

No hotel onde fiquei, no café da manhã, um senhor perguntou-me se o livro de Esopo não “era aquele sobre gente que mata gente, uma coisa horrorosa que foi proibida na ditadura”. Eu respondi que achava que não. Era sobre gente mas usando bichos, fazendo de conta que era assunto de bosque ou zoológico, para criar modos irónicos de pensar sobre pessoas. O senhor sentou-se na minha mesa e pegou no livro, exclamou que as ilustrações eram geniais, cobiçou tudo e voltou a insistir: foi proibido, sim. É uma obra perigosa. Quem não souber ler vai interpretar tudo mal e virar psicopata. Sorri. Disse-lhe que não seria tanto assim. É até um texto bastante moralista. Um receituário ético. Ensina a ser melhor, a ser social. Li-lhe a passagem do urso e da raposa. Contei-lhe do poema de Sophia. Pôs-se todo para trás.

Perguntou-me se Sophia não era a portuguesa que queria dormir com o irmão e escrevia poemas de amor lindos e depois se matou. Eu hesitei. Não era a Sophia. Se fosse alguém, poderia ser a Florbela. Hesitei muito. Não sei se a Florbela Espanca pensava no irmão. Respondi-lhe: começo a achar que este livro é perigoso, de facto. Ele replicou: e porque você o tem?

Nem que fosse pelas imagens. Apenas pelas imagens. Vale muito a pena. Ele disse-me que era verdade. As artes plásticas, mesmo mostrando o horror, conseguiam ser belas. A literatura, não. A literatura do horror destrói a humanidade. Fiquei um tempo parado. Decidi contar-lhe que escrevi um romance, chamado A Desumanização, todo a querer ser belo mas feito de muita agrura e alguma violência. Vim fazer o lançamento, acrescentei. O homem, imediatamente, respondeu: então, você estraga o mundo. Se vivêssemos numa ditadura decente, estaria proibido para bem dos homens. Ri-me.

Ele repetiu: as artes plásticas, mesmo mostrando o horror, conseguem ser belas. A literatura do horror destrói a humanidade. Os escritores deviam falar apenas da felicidade, porque as palavras não são suportáveis como a pintura. Porque a pintura é uma falsidade por natureza, as palavras são o modo como as pessoas pensam e procuram falar a verdade. Falar é insuportável.

Eu disse: a sua loucura é muito inspiradora. Vou passar a pousar sobre a mesa, no café da manhã, muitos mais livros incríveis como este.

Ficámos uns minutos mais refilando em desacordo. Depois, chegou o meu táxi e despedi-me. Ele chamou-me de covarde. Fugir de uma conversa assim era covardia. Também achei.     

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