Ensinar pássaros

No livro, encontramos os poemas de Francisco Duarte Mangas como pedrinhas brilhantes na terra. Ou gotas de água. Talvez orvalho. Coisas da natureza. A poesia de Francisco Duarte Mangas tem essa ambição, angustia e ansiedade, a de emanar da natureza como uma graça sua, um modo de espírito do que nos rodeia e sustenta.

Não é melancolia, é compaixão. Não sei se isto faz sentido com clareza, mas a poesia de Mangas não passa pelo lamento melado do que se vai perdendo, antes é um modo de compaixão pelo mundo que se esquece, um amor pelo telúrico que carrega também palavras velhas em desuso. Palavras do campo. É um exercício de regresso. A poesia como percurso de volta ao que vale a pena não abandonar.

Chama-se A Fome Apátrida das Aves, impecavelmente editado pela Modo de Ler, e recolhe a poesia de Francisco Duarte Mangas. Serve de caixa grande onde todas as paisagens do autor cabem. Falo de paisagens porque Mangas é um poeta de exteriores, um intérprete das montanhas, mapeando rios e rebanhos. Há uma espécie de elogio pelo que se abriga apenas ao relento, sejam essas águas caminhantes, sejam as árvores ou as casas.

Sempre tive a impressão de que a poesia de Mangas é um modo espiritual de pensar a natureza e propende para a entender como pura, ab initio. A natureza é pura. Com suas generosidades e agressões, com as súbitas estações, a natureza é reduto de juízo que devemos admirar e cuidar. Essa fúria pela pureza aparece em inúmeros versos, mas a angústia pela sua quase impossível dimensão fica belissimamente expressa assim: “a água é tão límpida / que um só peixe / bastava para a poluir.”.

Quando digo que Mangas é um poeta de exteriores, das paisagens, é engraçado reparar que ele pressupõe sempre uma imensidão, uma macro-imagem, mas fala de detalhes. Recolhe detalhes no espaço tremendo da natureza. Como se pudesse respeitar cada ínfimo pormenor. O respeito pelo detalhe é uma alusão ao equilíbrio da própria natureza. Uma alusão ao que cada coisa importa. E é sempre sobre a importância que Mangas escreve. A importância do que o mundo das montanhas e das lavras contém. Compreendo bem que João Barrento fale de poesia ecológica acerca de Mangas. Cada palavra carrega a utopia de educar para a manutenção do planeta. A poesia é sempre uma educação, do olhar, do sentimento, do afecto, dos gestos. Aqui, é a herança do mundo. A poesia é um modo de herdar o mundo. Saber dele, inventariá-lo na sua diversa liberdade e amá-lo.

Há cada vez menos poetas da terra. Esses cujo quotidiano se conta por caminhos e animais soltos, ventanias e sementes. Lembro-me de ler as questões de jardinagem de Margarida Ferra, que parecia fazer um campo em qualquer nesga de vaso, de varanda, de jardim de cidade. E lembro-me sempre das raparigas da aldeia de João Habitualmente, esse sentimental que se esconde debaixo de um humor fino, ao jeito do melhor de Álvaro Domingues. E havia uma Almerinda Alves que o Paulo Campos dos Reis lia magistralmente. Mulher de um só livro, onde estava um poema em que o fim do dia impunha que chamasse as suas cabras. E repetia, outra e outra vez, que chamava as suas cabras. O Paulo dizia aquilo profundo e podíamos bem achar que era real que uma mulher estivesse no topo dos montes, apressada sob o vento, a recolher o seu rebanho para terminar o trabalho. Foi, para mim, uma experiência inesquecível. Igual a ter ido terra fora, saltando pedras e muros antigos, um ramo de giesta nas mãos fustigando as abelhas gulosas.

Sentimo-nos assim depois da poesia de Francisco Duarte Mangas. Como tendo aloirado os cabelos ao sol, como tendo regressado à manualidade do trabalho, à atenção fundamental para a recondução de cada ideia ao seu início. A simplificação de todos os conceitos, porque a natureza é a definição pura de todos os vocábulos e de tudo quanto ainda nem vocábulo tem. A natureza é o dicionário exposto de todas as palavras. Recolhe-se dela poesia como de uma árvore se recolhe o fruto. Falta apenas ver, nutrir. A poesia é o mais que se consome.

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