Editores e autores continuam amigos mas os negócios já são à parte

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Quando António Lobo Antunes escreve, isolado em casa, a editora Maria da Piedade Ferreira serve de ligação ao mundo literário. David Clifford

Autores e editores tiveram sempre relações próximas e, em alguns casos, tempestuosas. Cumplicidade, amizade ou uma certa cerimónia são fundamentais, mas o mercado está a mudar as relações.

"Não aguento mais", escreveu Siegfried Unseld, editor de Thomas Bernhard, num telegrama para o escritor austríaco com quem teve uma relação de décadas, tempestuosa e difícil. A correspondência de quase 30 anos entre editor e autor foi publicada após a morte de ambos pela editorial alemã Surkampf, fundada por Unseld no pós-guerra, e revelou o inferno de amor-ódio de Bernhard e Unseld.

Na correspondência, Unseld escreveu a Bernhard que já tinha atingido o "limite doloroso", "depois de tudo o que, durante décadas, e especialmente nos últimos anos, temos tido em comum. Repudia-me, repudia os meus colaboradores que se dedicaram a si, repudia a editora. Não aguento mais". Bernhard, que tinha fama de irascível, respondeu-lhe: "Se, como diz no seu telegrama, não aguenta mais, apague-me da sua editora e da sua memória. Sem dúvida que fui um dos autores menos complicados que alguma vez teve."

Escritores que telefonam aos seus editores a meio da noite; que recebem o almoço em casa enviado pela editora (era o caso do poeta Mário Cesariny, na Assírio & Alvim); escritores que passam horas ao telefone com os seus editores em crises existenciais, de criatividade, bloqueios ou reclamações sobre alterações ao texto: tudo isto está a mudar.

Escritores mudaram

As relações profissionalizaram-se porque "houve uma mudança de paradigma" na edição, diz Ana Maria Pereirinha, que trabalha em edição desde 1999 - já passou pela Temas e Debates, QuidNovi e agora está na Planeta. "Essa mudança de paradigma deu-se a partir do momento em que os escritores deixaram de estar nas vanguardas, passaram a estar atrás do público em vez de estar à sua frente: agora os escritores escrevem para o público, já não é o público que vai atrás da novidade."

O que se perde em horas de amizade ou de boémia ganha-se em reuniões de edição. Em Portugal, diz Ana Pereirinha, "há uma certa cerimónia dos editores em relação aos consagrados". Maria da Piedade Ferreira, editora da Dom Quixote, confirma: "Nunca me atrevi a mexer nos livros do Vergílio [Ferreira] ou do [António] Lobo Antunes. Posso dizer que achei um capítulo demasiado longo, mas eles registam e já não os afecta nada, porque na cabeça deles o livro está acabado, já não o vão mudar."

Não é assim com autores mais jovens. João Ricardo Pedro, por exemplo, que ganhou este ano o Prémio Leya com O Teu Rosto Será o Último, chegou de "pára-quedas" ao mundo editorial português. Não vinha do meio, era engenheiro electrotécnico. Confessa que "o livro teve muita sorte" porque uma das garantias do prémio era a publicação. Mas revela que a editora Maria do Rosário Pedreira quase não lhe tocou no livro: "Fez algumas sugestões, muito pequenas, que aceitei de imediato. Coisas de pontuação, de itálicos, correcções de alguém que tem imensa experiência na área da edição."

João Ricardo Pedro diz que "talvez hoje seja mais fácil um escritor admitir uma crítica, fazer concessões". As sugestões da sua editora foram "processos de aprendizagem" e confessa que agora, ao escrever o segundo livro, se sente "um escritor muito mais experiente". O escritor e a editora "debatiam e conversavam" e esse trabalho é "um jogo muito interessante porque nos obriga a reler o texto de uma forma crítica, porque o editor tem de conhecer o livro tão bem como o seu escritor".

Rui Zink, escritor mais experiente, diz que é um mito que os escritores sejam prima-donas e se incomodem quando os editores lhes fazem sugestões: "Acontece que, para o autor, o seu livro tem um valor afectivo que não tem para mais ninguém - e um editor que não entende isso ou ridiculariza isso devia mudar de profissão." Ou seja: "Um editor que lhe diz "amo tanto o teu livro como tu o amas" está a mentir." Ana Maria Pereirinha acrescenta que os "escritores são especiais" e os editores, afinal, "têm de saber gerir as suas sensibilidades, têm de saber compreender aquele material humano".

Maria da Piedade Ferreira tem mais de quarenta anos de experiência em edição - começou em 1971 na Bertrand, passou pela Difel, Quetzal, Gótica e Dom Quixote; trabalhou com Vergílio Ferreira, Augusto Abelaira, Fernanda Botelho, Fernando Namora. Nunca pensou no seu papel de editora para a posteridade: "Tirei poucas notas, nunca coleccionei histórias", conta, rindo, quando se lhe pergunta se gostaria de publicar as suas memórias da edição em Portugal. Mas revela, por exemplo, que tinha "uma óptima relação" com Vergílio Ferreira (1916-1996), que tinha "muito mau feitio, era amargo, e difícil". São "relações muito fortes, de cumplicidade", o importante é "o editor conhecer o autor com quem trabalha, saber conviver com cada uma das personalidades diferentes respeitando o trabalho de cada um".

Mercado impiedoso

O histórico editor argentino Mario Muchnik contou recentemente ao El País: "Um dia disse à Carmen Balcells [poderosa agente literária espanhola que representou Pablo Neruda, Gabriel García Márquez ou Mario Vargas Llosa] que era amigo de todos os meus autores. Ela respondeu-me que isso era mentira, ninguém é amigo de todos os seus autores. Mais: que há interesses, não amizades. Provavelmente, ela tem razão, não se pode ser amigo de todos os autores, ou, pelo menos, não se pode sê-lo da mesma maneira."

É precisamente porque "cada caso é um caso" que as relações entre editores e autores podem ser tão díspares. "Há autores que são mais fáceis e outros que exigem mais atenção", explica Piedade Ferreira. A editora acompanha com regularidade o trabalho de António Lobo Antunes, por exemplo. "O Lobo Antunes escreve em casa, está um pouco isolado, e eu sou a ligação dele com a editora, com as promoções, idas ao estrangeiro, entrevistas e convites." É um contacto muito frequente, "há outros autores que não precisam de tanto acompanhamento".

Ana Maria Pereirinha conta que há autores de quem é amiga e "quando deixei de os editar, continuámos a ser amigos; há outros com quem tenho excelentes relações mas não somos amigos". Rui Zink admite que "a amizade era importante no tempo em que um livro tinha importância. Agora, tal como no futebol, perdeu-se o amor à camisola. Ganhou-se talvez em "profissionalismo". Antigamente eram os autores que "traíam" os editores. Agora mudou. E já me aconteceu assinar um contrato por amizade ao editor e, depois, ficar preso a uma casa onde não conheço ninguém". Pereirinha acrescenta que hoje o "mercado é muito mais impiedoso" e que a ideia romântica sobre a relação de amizade entre editor e escritor está a mudar. "Não é muito saudável um autor entregar-se de alma e coração a uma editora, porque já não há editores para a toda a vida, como não há empresas para toda a vida. São contratos a termo."

Por isso, não foram só os escritores que se "profissionalizaram". Os editores também. Em Portugal, poucos são os editores que ainda estão à frente das casas editoriais que fundaram, como era o caso de Nelson de Matos, na Dom Quixote, ou de Manuel Hermínio Monteiro, na Assírio & Alvim. Rui Zink diz: "Hoje um editor é um mero assalariado." Maria da Piedade Ferreira concorda: "Cada vez tende a ser mais [um assalariado]. Quando trabalhava na Quetzal, nós é que decidíamos o que queríamos publicar, não tínhamos de dar satisfações a ninguém, se não vendia o prejuízo era nosso. Agora, num grupo editorial, os condicionalismos são diferentes e a margem de manobra muito mais limitada."

Rui Zink diz que a relação entre editores e autores mudou "a partir do momento em que a alta finança descobriu que há dinheiro a ganhar no livro". Por isso, Zink acrescenta: "Não aconselho nenhum jovem escritor a ser profissional, a ser escritor full-time. A única forma de escapar é conseguir ter a liberdade para não estar sempre dependente do mercado. Um escritor "profissional" arrisca-se a estar sempre a sorrir e a não poder dizer uma bojarda quando lhe apetece."

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