É na canção popular brasileira que melhor se vê a líbido da língua portuguesa

Será o português uma língua boa para a criação? Colóquio na Fundação Gulbenkian juntou durante dois dias escritores, músicos, actores, encenadores, teóricos e programadores para responder a esta e outras perguntas.

Foto
Chico Buarque foi um dos compositores mais evocados durante o colóquio sempre que se falou de música e palavra Paulo Pimenta

O que pode uma língua? Para uns tudo, para outros nada (pelo meio fica Nuno Artur Silva, fundador da agência Produções Fictícias, a garantir que “haveria tanto a dizer sobre o assunto e os seus múltiplos sentidos…”). No colóquio de segunda e terça-feira, em Lisboa, a Fundação Calouste Gulbenkian juntou profissionais de várias áreas, da música à literatura, passando pelo teatro, a dança e o cinema, sem esquecer os programadores, para debater as potencialidades criativas da língua portuguesa. O que é que só se pode dizer em português? Esta é uma língua estranha para quem compõe? Que dificuldades enfrenta quem a traduz? E como explicar a um americano que uma palavra pode ter muitos sentidos lá dentro?

Para quem trabalha a língua portuguesa, seja para escrever livros ou canções, ela é sobretudo um referente cultural, uma ferramenta de trabalho ou, como defende o escritor Mário de Carvalho, um reservatório de memória e tradição, como a própria literatura. “A memória também está nas palavras porque elas transportam uma história, carregam o grego e o árabe”, explicou no painel dedicado à criação literária, em que estiveram também o tradutor americano Richard Zenith, Nuno Artur Silva ou o cabo-verdiano Germano de Almeida.

Foram precisamente estes dois últimos que extremaram posições a partir do tema do colóquio, directamente saído da canção Língua, de Caetano Veloso (“O que pode uma língua?”). O primeiro, ligado sobretudo ao audiovisual, defendeu que o português nada pode se sobre ele não formos capazes de construir mitos: “A língua [portuguesa] é o território, não é a pátria. Essa está nos mitos, no imaginário, nas pessoas que se emocionam com o mesmo que nós.” Sem esse “imaginário” será um instrumento pouco útil, mesmo que seja a mais falada do hemisfério sul. Já o autor de O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo e de As memórias de um espírito encontra na língua portuguesa uma “fonte de riqueza” que nas suas ilhas se mistura com o crioulo. “Na minha casa o meu pai falava em português e minha mãe em crioulo. Eu nasci bilingue e quando cresci fiquei abismado ao descobrir que havia cabo-verdianos que não [o] eram”, explicou, dizendo que escreve em português sobre uma realidade e uma cultura que é a de Cabo Verde – a sua.

Para Germano de Almeida, conferencista transformado em contador de histórias para explicar que a língua portuguesa lhe é tão importante que chegou a acabar um namoro porque alguém lhe escreveu num papel “penço em ti” – “como poderia eu continuara a namorar uma mulher que escrevia ‘penso’ com ç?” -, o português é uma “ponte entre culturas”. Admitindo que o usa para escrever porque lhe é natural fazê-lo e lhe permite chegar a uma audiência mais vasta, mesmo quando isso lhe vale muitas críticas no seu país, o autor continua a defender o crioulo como “língua de intimidade”, feita para “trazer no dia-a-dia”: “O cabo-verdiano namora em crioulo. Não passa pela cabeça de um cabo-verdiano dizer ‘amo-te’ a uma mulher. ‘Amo-te’ é uma palavra violenta…”

Riqueza de sentidos
Palavras “violentas”, “formais”, uma “maneira de falar que fecha as vogais” e torna mais presentes as consoantes que, para um estrangeiro, são difíceis de dizer. Uma língua que resulta de “uma longa decantação”: “O português de Portugal pode ser uma língua dura, difícil. O do Brasil amacia-o, como o africano. Muda-lhe os ritmos e as entoações, junta-o às línguas indígenas para criar uma espécie de irradiação atlântica”, diz ao PÚBLICO José Miguel Wisnik, autor, compositor e professor de Literatura da Universidade de São Paulo, convidado do painel moderado pelo musicólogo Rui Vieira Nery.

“O português que se fala aqui é mais gutural, cria uma série de percussões surdas. O do Brasil estabiliza as vogais, o que deixa que as sílabas durem - é como uma orquestra em que se ouvem as cordas e os sopros”, explica o músico que também compõe para cinema, teatro e dança. “Mas todas as línguas inventam um modo de dizer.”

No caso do português, a ligação à música, seja ela erudita ou popular, faz parte da história da própria língua, lembra Wisnik, referindo-se às cantigas de amor e de amigo medievais. E se é verdade que há géneros musicais em que se torna mais difícil usá-la – “na tradição do bel canto a técnica foi optimizada para o italiano” -, outros há em que ela é tão natural como respirar, até pela sua “riqueza de significações”.

Para Alexandre Delgado, músico e compositor, autor das óperas O Doido e a Morte e A Rainha Louca, para além da riqueza de sentidos há a considerar como enormes vantagens da língua portuguesa uma “rítmica natural altamente irregular” e uma “fonética variadíssima”, que torna fácil ao português falar outros idiomas porque conhece uma grande panóplia de sons e consegue imitá-los.

Quando compõe ou traduz libretos para português, Delgado diz ter sempre a preocupação de que as palavras sejam claras – “há contextos em que, se se deixa de perceber a linguagem, a música não faz sentido” – o que não se passa com muitos outros autores. Luís Tinoco, que também está habituado a compor para palco, é um deles. “Aceito que seja legítimo destruir as características da própria língua para fazer música, que se sacrifique a compreensão. Tão legítimo como fazer música para que se perceba cada palavra”, diz, reconhecendo que há línguas mais propícias a determinado tipo de música. “Não é por acaso que não há jazz em chinês e que uma música marcial casa muito bem com o alemão”, exemplifica o autor da ópera Paint Me (2010) e de partituras para textos de poetas e escritores como Álvaro de Campos (From the Depth of Distance) e Camilo Pessanha (Três Poemas do Oriente).

Para Tinoco, todo o compositor de música erudita é um optimista que procura um som – “qualquer som é musicável” – e um texto pode garantir, mais do que as palavras certas, uma atmosfera propícia ao nascimento de uma ideia: “Quando pego num texto estou preocupado com a forma como ele estimula a minha imaginação musical e não com o som das palavras escritas.” É por isso que defende que, por vezes, para trabalhar há que abdicar de aspectos estritos da cultura portuguesa. “A minha pátria língua está seguramente naquilo que é a herança que nos deixam os nossos escritores – a relação afectiva que consigo estabelecer com eles é irrepetível com autores estrangeiros.”

Uma canção livre
Na canção popular, e devido, talvez, à presença de Wisnik, o debate da Gulbenkian andou muito à volta das diferenças entre trabalhar o português do Brasil e o de Portugal e sobre a resposta à pergunta: “O que é que nasce primeiro – a letra ou a melodia?”

Tiago Torres da Silva, Pedro Silva Martins e Ângelo César (Boss AC) representaram os letristas e compositores portugueses, para quem a palavra pode funcionar como um gatilho ou ser o que mais pesa numa canção.

Silva Martins, compositor dos Deolinda, mas também de temas para os fadistas Ana Moura, Cristina Branco e António Zambujo, diz que procurar palavras para colocar nos intervalos que a música deixa é a parte “mais intensiva” do ofício de criar canções. É dele a expressão “palavra-gatilho” – a que faz despoletar toda a letra – e a ideia de que a melodia nasce primeiro porque “ela já traz uma história”: “Eu acredito que existe uma língua musical portuguesa que não precisa de palavras.”

Boss AC é um adepto da palavra. Embora já tenha composto para fado, o músico a quem se devem discos como Preto no Branco e Rimar contra a Maré, tem-se dedicado sobretudo ao rap e ao hip-hop, géneros em que “o português de Portugal é um desafio”. “O português de Angola também é muito mais musical que o daqui”, sublinha o compositor de origem cabo-verdiana. Boss AC começou por escrever em inglês, imitando os intérpretes que ouvia quando era ainda adolescente, mas rapidamente optou pela sua língua: “A música só faz sentido se percebermos tudo o que está a ser dito.”

Tal como o compositor dos Deolinda, Tiago Torres da Silva gosta de sublinhar a importância da palavra, sobretudo quando se trata de fado tradicional, género em que “é mais importante ouvir a voz do que a melodia”, mas dá prioridade à música. Escritor, encenador e letrista, diz que as palavras das canções ainda são vistas como “poesia menor” e que compõe com um pé em Alfama e outro em Ipanema. Quem olha para o seu percurso não tem qualquer dificuldade em acreditar nesta ponte atlântica que o faz falar de Chico Buarque e João Gilberto com a mesma intensidade com que cita Amália, o que leva Rui Vieira Nery a chamar-lhe o “Pedro Álvares Cabral da canção”, com David Mourão-Ferreira e Vinicius de Moraes no ADN.

Tiago Torres da Silva já escreveu para Teresa Salgueiro, Carminho, Maria João, Ricardo Ribeiro, Tereza Tarouca e Carlos do Carmo, mas também para Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Maria Bethânia, Daniela Mercury e Tito Paris. A língua portuguesa interessa-lhe, venha ela de onde vier, só é preciso levar em conta que “cada tipo de música tem um dialecto próprio”: “Há palavras que o fado não admite.”

A generalidade dos compositores brasileiros, explica o letrista, fazem a música primeiro, os portugueses querem musicar a letra. "A canção brasileira é, por isso, muito mais livre”. Seja como for, “escrever canções populares aprende-se na rua, nas casas de fado de Lisboa que não são para turistas ou nos botecos da Lapa do Rio de Janeiro”. Wisnik concorda. É na rua que a língua se usa sem constrangimentos, explorando os múltiplos significados em que o português é rico. Além disso, a música popular brasileira – a de Chico Buarque, “esse grande escritor de livros e de canções”, Caetano Veloso, João Gilberto, Noel Rosa, António Cícero e muitos outros – está “profundamente ligada à fala”. João Gilberto é a “figura-mestre” desta canção como lugar da palavra oral, em que a entoação é música.

Há canções, garante Wisnik, em a palavra recebe uma injecção de regularidade da música – e começa a entoar Garota de Ipanema, tema eterno de Vinicius e Tom Jobim, para exemplificar -; há outras em que se passa o contrário (desta vez evoca um samba de Noel Rosa que é "como uma conversa de botequim”). “Na ‘passionalizante’, diferente das outras duas, as sílabas estendem-se para explorar a música, do grave ao agudo” – e começa a cantar baixinho “Eu sei que vou te amar/Por toda a minha vida eu vou te amar”... Temas que fizeram da música brasileira um veículo único da transmissão do português pelo mundo, sublinha este professor que deu aulas de literatura nos Estados Unidos, onde muitos dos alunos que se inscreviam nas suas cadeiras o faziam para aprender a cantar.

“Há poesia que tem desejo de canção e outra que não. Num tema como Língua, de Caetano, se vê muito bem essa aproximação entre a canção e a oralidade; se vê muito bem a libido da língua portuguesa, uma língua que tem algo de carnal, que está ligada ao prazer, ao que comemos e ao gosto das palavras.” Talvez por isso Caetano cante “Gosto de sentir a minha língua roçar/ A língua de Luís de Camões”.

Sugerir correcção
Comentar