Durão Barroso diz que excepção cultural exigida por França é “reaccionária”

Durão Barroso criticou a França, sem a nomear, numa entrevista ao International Herald Tribune.

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Durão Barroso na Cimeira do G8, que começou hoje na Irlanda do Norte AFP

O presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, considerou “reaccionária” a exigência francesa de excluir o sector audiovisual e cultural europeu das negociações para um acordo de comércio livre com os Estados Unidos. O Presidente francês, François Hollande, já reagiu às declarações de Durão e “não queria acreditar” nos termos usados pelo presidente da Comissão Europeia.

A insistência - francesa - na manutenção da excepção cultural nos acordos de comércio livre entre a Europa e os EUA “faz parte de uma agenda antiglobalização que considero completamente reaccionária”, disse Durão Barroso numa entrevista ao International Herald Tribune publicada na segunda-feira. O presidente da Comissão Europeia, que nunca nomeia directamente a França na entrevista, assegurou que acredita na protecção da diversidade cultural, mas que rejeita isolar a Europa. “Alguns dizem que são de esquerda, mas na verdade são culturalmente extremamente reaccionários”, disse.

“Não quero acreditar que o presidente da Comissão Europeia possa ter feito estas declarações sobre a França, nem que tenha esta opinião sobre os artistas que se exprimiram”, declarou o Presidente francês, François Hollande, aos jornalistas à chegada a Lough Erne (Irlanda do Norte) para a cimeira do G8. “Aquilo que eu exijo ao presidente Barroso é que agora ponha em prática o mandato que lhe foi concedido pelos estados membros”, sublinhou Hollande. Numa conferência de imprensa posterior, um porta-voz da Comissão Europeia, Olivier Bailly, explicou que a crítica de Barroso não visava a França mas sim “aqueles que, paralelamente, lançaram ataques pessoais contra o presidente Barroso, muitas vezes violentos e injustificados.”

Miguel Gomes, um dos signatários de uma petição contra o fim da excepção cultural nos acordos de comércio livre entre os EUA e a Europa, lançada na internet a 22 de Abril, não esconde a surpresa pelo teor e pelo tom das declarações do presidente da Comissão Europeia. “O doutor Durão Barroso passou-se”, exclama. “As declarações são absurdas. Considerar reaccionária esta ideia que vinga há vinte anos e que é a base de uma política cultural europeia é que me parece reaccionário. São mais estas questões que aproximam os cidadãos europeus, e menos questões de identidade, dadas as muitas diferenças que existem, por exemplo, entre Portugal e a Finlândia. É em nome destas ideias que existe o projecto europeu”, defende.

As críticas de Durão Barroso surgem depois das longas negociações realizadas na sexta-feira entre os 27 ministros do Comércio da União Europeia para acordar os termos do mandato para negociar o acordo UE-EUA, que será o maior acordo de comércio livre do mundo. A reunião de sexta-feira realizou-se sob intensa pressão, para permitir à Comissão Europeia lançar formalmente as negociações para a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento UE-EUA na Cimeira do G8 que se inicia esta segunda-feira na Irlanda do Norte.

Ao fim de 13 horas de negociações, França manteve a insistência na chamada “excepção cultural”, que prevê a protecção do sector cultural e a exclusão “clara e explícita” do audiovisual, exigência que acabou por ser aceite com a condição de a Comissão Europeia poder voltar à questão se for necessário.

Durão Barroso afirmou que aqueles que receiam uma invasão cultural norte-americana da Europa têm “uma agenda anti-cultural” e “não compreendem os benefícios que a globalização traz também do ponto de vista cultural”. França saudou o resultado das negociações de sexta-feira, mas o comissário europeu do Comércio, Karel de Gucht, afirmou que vai “ouvir o que os amigos norte-americanos têm a dizer” e depois, se for necessário, “pedir mandatos adicionais”.

A petição contra o fim da excepção cultural nos acordos de comércio livre entre os EUA e a Europa deu visibilidade pública a uma preocupação que há muito era debatida no sector. Realizadores premiados como Michael Haneke, os irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne, o francês Michel Hazanavicius, o espanhol Pedro Almodóvar ou o britânico Mike Leigh, aos quais se juntariam os portugueses Miguel Gomes, Manoel de Oliveira ou Pedro Costa, ou o norte-americano David Lynch, subscrevem um manifesto em que mostram a sua preocupação face ao risco de a Europa ser inundada por produtos norte-americanos. Na semana passada, numa conferência de imprensa no Parlamento Europeu, o realizador Costa-Gavras disse: “o senhor Barroso é um homem perigoso para a cultura europeia”. 

O facto de haver realizadores americanos a defender a manutenção da excepção cultural não deve causar surpresa. Como aponta Miguel Gomes, “muitos realizadores americanos, como [David] Lynch, por exemplo, beneficiaram de apoios europeus”: “Os ‘blockbusters’ representam uma grande fatia das receitas dos estúdios de Hollywood, mas há também filmes com orçamentos mais reduzidos que têm lógicas de produção porventura mais próximas das europeias. Não são dois blocos em confronto como na Guerra Fria, existe diversidade e os americanos também têm beneficiado desta concepção europeia de apoio ao cinema”.

Miguel Gomes espera que “nunca venhamos a saber” como seria o panorama cinematográfico europeu na ausência da excepção cultural. “A indústria do cinema é tão forte nos Estados Unidos que uma total abertura faria com que produção de cinema em Portugal e o circuito de salas, que já enfrenta as dificuldades que enfrenta, fossem completamente esmagados. A produção de cultura não pode ter os mesmos parâmetros em termos de comercialização que um carro”.  

A excepção cultural nasceu há mais de duas décadas como garante da diversidade cultural e salvaguarda da produção local e como excepção às regras do comércio livre da Organização Mundial do Comércio. Perante a importância da indústria de Hollywood na balança de comércio externo dos EUA, o realizador português António Pedro Vasconcelos confessa-se pouco espantado pelos termos usados por  Durão Barroso, que classifica como "claramente um homem ao serviço dos interesses americanos". 

Vasconcelos, que se encontra em rodagem do seu próximo filme, acompanhou o trabalho do então comissário para o Audiovisual, João de Deus Pinheiro, nas negociações com os EUA e considera que a manutenção da excepção cultural "é absolutamente decisiva", porque "é impossível pensar que o cinema e o audiovisual europeu sobrevivam sem o apoio do Estado, disse ao PÚBLICO.

Comentando que a influência dos produtos audiovisuais norte-americanos é tal que "vivemos já de sonhos importados", António Pedro Vasconcelos reitera que apesar de ter uma posição crítica quando ao papel do Estado no audiovisual, defende sem hesitações a excepção cultural. "Eu sou contra os apoios directos [do Estado à produção cinematográfica], sou contra o Estado ter uma política de gosto e decidir quem filma" num dado ano, explica. "Mas sempre defendi que é absolutamente vital que o Estado intervenha neste sector, apesar de se ter demitido de várias outras intervenções necessárias" na área, como a regulamentação quanto à concentração vertical, por exemplo.

Vários responsáveis europeus têm-se oposto à exigência francesa alegando que ela vai dar vantagem aos Estados Unidos num conjunto de negociações previsivelmente muito difíceis. Os EUA têm recusado excluir qualquer sector das negociações. A concretizar-se, o acordo de comércio livre entre a Europa e os Estados Unidos será o maior do género no mundo. Em 2012, o comércio bilateral entre os dois blocos foi de cerca de 500 mil milhões de euros, os serviços 280 mil milhões e os investimentos vários milhões de milhões de euros.

Actualizado às 19h02
 

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