Crítica de dança: Portugal a gostar de si próprio

Fica no Singelo, de Clara Andermatt (estreia absoluta). Teatro Viriato, 13 de Dezembro, 21h30. Sala cheia. Cinco estrelas.

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"Fica no Singelo", a última peça de Clara Andermatt José Alfredo
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"Fica no Singelo", a última peça de Clara Andermatt José Alfredo
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"Fica no Singelo", a última peça de Clara Andermatt José Alfredo
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"Fica no Singelo" José Alfredo
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"Fica no Singelo" José Alfredo
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Um momento do ensaio Nuno Ferreira Santos

“Fica no singelo!”. O mandador instrui os seis bailadores nos passos mais simples da valsa mandada.

Primeiro num murmúrio e depois em crescendo, o acordeão e a toada repetitiva do mandador é um mantra a inocular no grupo uma aceleração febril: os passos ganham amplitude, o movimento a expandir-se num transe, até os corpos se jogarem sobre o chão, exaustos. Recuperado o fôlego, um intérprete aflora a boca do palco e confidencia-nos: “Cada passo requer um esforço.”

Assim daremos por nós dentro de danças e instrumentação musical tradicionais, como a chamarrita, gota, fandango, corridinho ou a muinheira, refeitas ou desconfiguradas no limiar do reconhecível. A soberba composição coreográfica revela-nos, desde o interior, uma dança que se alimenta do prazer intenso da relação lúdica com o outro, da catarse colectiva. Pressente-se na assistência um frémito de comoção: esta viagem pelos ritos sociais, no que de humano têm de mais essencial, chega-nos através de uma abordagem cristalina de um património performativo em que nos reconhecemos.

Em Fica no Singelo há uma reconciliação radiosa que tardava entre a dança contemporânea e um folclore que sobreviveu, a custo, à ideia do Estado Novo sobre um certo Portugal rural, em circuitos socio-culturais periféricos e informais e na diáspora. Mas  a prática das danças tradicionais ressurgiria, nos últimos anos,  com a moda das “danças do mundo” e a nova vaga de praticantes, mais (ou menos) jovens, que fazem o sucesso do festival Andanças, promovido pela  Associação Pédexumbo no interior  do país. Parceira criativa da peça de Andermatt, a Pédexumbo  animou ainda o concorrido baile em palco no final do espectáculo.

Pressagiando um deslumbramento idêntico ao do seu “período cabo-verdiano”, há muito que Clara Andermatt adiava a entrada neste ciclo criativo timidamente aberto com Olga Roriz (Terra do Norte, 1985), apenas tangenciado pela Nova Dança Portuguesa, e recentemente adensado por coreógrafos como Filipa Francisco (e por Vera Mantero em Exercícios em Antropologia Ficcional). Talvez por isso reencontremos aqui o encantamento iniciático de Dançar Cabo Verde (1994), a mesma ousadia, o risco da trajectória minada: o de teatralizar práticas expressivas que pertencem ao quotidiano e à tradição popular.

Sublimes e inesperados elementos transportam-nos entre o presente e o passado: a discreta evocação folclórica da indumentária que faz com que as personagens lembrem pinturas de Malhoa; a paisagem sonora, entre a trepidação urbana e uma borrasca no campo; a exploração surreal das bailadoras, desconstruindo os “mandos” tradicionais; a subtil subversão de um fandango executado sobre os joelhos; e, sobretudo, o júbilo que Andermatt procurou nos jovens intérpretes. Tudo isto nos mostra onde pode levar-nos um voo livre sobre uma cultura patrimonial, amiúde deslembrada, mas que faz parte da nossa identidade.

Uma penumbra descerá sobre a cena e, por fim, as silhuetas no terreiro de uma festa popular deixam-nos perante a persistência da memória. Do calor do teatro para a gelada noite de Viseu, ao cogitar sobre o que pode uma revisitação das tradições fazer pela nossa necessitada autoestima colectiva, ocorre-nos um daqueles rasgos de simplicidade com que Nelson Mandela surpreendia os ecrãs do globo inteiro: “São a música e a dança que me pacificam com o mundo.”


O Público viajou a convite da Companhia Clara Andermatt
 
 
 
 

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