Conchita, a política e a Europa

A vitória da drag queen Conchita Wurst foi vivida como a derrota da Rússia. O triunfo da possibilidade de se ser o que se quiser, contra a intolerância.

É nas coisas a que, numa primeira leitura, tendemos a não atribuir grande importância, pelo menos perante os outros, que acabamos por nos revelar. É como nos sonhos. Rimo-nos deles, quando os contamos. Mas depois de decifrados, entendemos o seu alcance.

Quando discutimos apaixonadamente assuntos mundanos acabamos por expor indirectamente de forma mais verdadeira o que pensamos sobre política ou a vida em comunidade. E com os estados acontece o mesmo. Nas cimeiras prevalece o calculismo.

Em ocorrências como o Festival Eurovisão da Canção é como se o sentir espontâneo das pessoas de diferentes países se revelasse na forma como vivem esses acontecimentos, marcando uma posição.

E um festival de música, sem qualquer tipo de credibilidade artística, pode tornar-se lugar de confronto de ideias, de formas de olhar o mundo. Mais uma vez isso aconteceu este fim-de-semana no Festival Eurovisão da Canção, com a vitória da drag queen austríaca Conchita Wurst, cujo verdadeiro nome é Tom Neuwirth, a despoletar as mais diversas reacções, com muitos a interrogarem o que é que a sua vitória teria a ver com música.  

Como é evidente, música não é apenas música. É também o sistema de representações que a envolve. E neste caso concreto, mais até do que questões de “género”, o que esteve em evidência foi política. Foi a cultura popular a fabricar política pura e dura.

É verdade que o festival sempre foi político. A pontuação que Portugal atribuía a Espanha – e vice-versa – sempre teve duplas leituras. E também existiu sempre espaço para a estética “queer”, no sentido da encenação de quadros assumidamente exagerados, dentro de certos limites considerados toleráveis. Mas dir-se-ia que, nesta edição, tudo isso foi mais visível. E não foi acaso.

Desde que o festival se alargou aos países do Leste que é aí que ele é vivido com mais paixão. É também do Leste, personificado nos últimos tempos pelo poder russo, que os ventos de moralismo, de conservadorismo religioso e de leis anti-gay prevalece, misturado com antagonismo aos países europeus do Ocidente, encarados como demasiado permissivos nos costumes.

Foi neste caldo, a que se juntou o conflito ucraniano, que se desenrolou o Festival Eurovisão. A vitória de Conchita foi vivida como a derrota da Rússia. O triunfo da possibilidade de se ser o que se quiser, contra a intolerância.

As reacções do público na cerimónia (com assobios constantes para as concorrentes russas) e a geografia de afectos a que corresponderam as votações foram contaminadas por esse contexto.

E o remate final foram algumas reacções russas, como a do vice-primeiro-ministro Dmitry Rogozin que escreveu no Twitter que o resultado da Eurovisão “deu uma ideia geral aos defensores da integração europeia do que devem esperar de uma adesão à Europa: uma mulher de barba”.

O festival acabou por se construir como um ensejo político, através da afirmação sexual, emergindo também como reflexo da Europa actual, fracturada e crispada, incapaz de perceber que é pelas diferenças (económicas, políticas, culturais ou de estilos de vida), e pela riqueza que cada país transporta, que se deve unir.

Uma Europa inapta para compreender que a sua maior herança é precisamente a diversidade, essa arte de vivermos com Outros, apesar das diferenças, ou precisamente por causa delas.

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