Colecção Miró: aumentam as interrogações

Barreto Xavier será recordado apenas por ter defendido e autorizado a extradição ilegal de 85 obras de Miró.

Desde Janeiro que se abriu em Portugal um inesperado debate sobre venda de Património Cultural do Estado, desencadeado pelo anúncio do leilão da coleção Miró (detida pela Parvalorem SA) na Christie’s, em Londres, às ordens do Governo de Passos Coelho. Desde então temos assistido ao desenrolar das várias fases deste processo, bastante extraordinário, que revela muito sobre a mentalidade de quem hoje conduz o país.

Este assunto tem vários ângulos de análise. Centremo-nos nos mais evidentes: o da política cultural e o da eficácia administrativa. Em ambos, a ação do Governo tem sido displicente, demagógica, manipuladora e, felizmente (no plano administrativo), incompetente. Um terceiro ângulo, o judicial, será aquele que acabará por encerrar este lamentável episódio da história da cultura portuguesa, episódio que vai perdurar na memória futura como exemplo da pobreza do pensamento político, da ausência de estratégias em prol dos portugueses, da insensibilidade e da ignorância destes governantes, que, por má sorte, vieram acrescentar a uma grave crise económica uma profunda crise de valores.

1. No plano cultural, o não reconhecimento da importância da manutenção da coleção Miró em Portugal comprova a inexistência duma política cultural no Governo. Se a houvesse, esta coleção de arte já paga pelos portugueses e constituída por várias dezenas de obras de um dos maiores artistas mundiais do século XX, Joan Miró, deveria ser considerada uma oportunidade de enriquecermos o nosso acervo patrimonial e a nossa oferta turística, e uma oportunidade de podermos reaver o investimento já feito por todos nós na coleção aquando da nacionalização do BPN. As receitas da sua exibição ao longo das próximas décadas – mantendo-se ao serviço do enriquecimento cultural dos portugueses–- encarregar-se-iam disso. Em 2008, o então ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, avisou, por ofício, os gestores do BPN recém-nacionalizado de que nenhum destino poderia ser dado à coleção de arte do banco sem conhecimento prévio do Ministério da Cultura. Mas isso era quando havia tutela para a cultura. Com este Governo, logo que as obras passaram finalmente para a titularidade do Estado, em 2012, as Finanças apressam-se a anunciar a sua venda. Resta-nos a Lei de Bases do Património Cultural, que protege os bens culturais móveis, independentemente de serem ou não classificados, tal como previsto na Convenção da UNESCO, na Convenção da Unidroit e nos regulamentos e diretivas da União Europeia sobre circulação de bens culturais. Lei que o secretário de Estado da Cultura atropela, em atos “manifestamente ilegais”, para facilitar a venda da coleção. Será só por ausência de pensamento estratégico para a cultura ou será por outra razão?

2. No plano administrativo, as irregularidades de procedimentos, ou melhor, a série de episódios rocambolescos que levaram a Christie’s a abortar o leilão em Fevereiro, incluíram a extradição de obras de arte sem autorização legal e a circulação internacional das obras sem as respetivas guias de transporte. A muito custo e graças às diligências parlamentares de deputados, hoje já se conhece um pouco mais dos contornos processuais desta venda, muito embora o clima de opacidade, de meias-verdades e de enganos permaneça no discurso das entidades responsáveis (por ex., o contrato entre a Parvalorem e a Christie’s continua sob sigilo, sem que haja base jurídica para tal). Mas da análise possível dos documentos que já se conhecem, tudo indicia que a Parvalorem já terá vendido à Christie’s a coleção Miró por 35 milhões de euros, aos quais acrescerão 13,5% das mais-valias que a Christie’s vier a obter na revenda em leilão. Só assim se explica a recusa do primeiro-ministro em vender a coleção ao empresário Rui Costa Reis, que ofereceu 44 milhões (e a manteria no Porto) e a recusa em autorizar uma exposição das obras em Portugal sem autorização da leiloeira. Mais grave ainda é este negócio, a ser uma venda encapotada, ter acontecido sem concurso público e sem visto do Tribunal de Contas. A serem verdadeiros estes contornos, terá sido incompetência ou será por outra razão?

3. Resta o ângulo judicial e a memória futura: decorrem ainda providências cautelares no Tribunal Administrativo e descobriu-se a prova que o secretário de Estado da Cultura, a secretária de Estado do Tesouro e o diretor-geral do Património Cultural (DGPC) falsearam informações à Assembleia da República: afinal, 41 Mirós estão em Portugal desde 2003, portanto, têm que ser obrigatoriamente classificados pela DGPC. Mas o secretário de Estado da Cultura já anunciou que irá autorizar a exportação das obras e o leilão continua inexplicavelmente marcado para Junho. É provocação ao tribunal ou será outra coisa?

Sousa Lara foi um secretário de Estado da Cultura cujo nome hoje é recordado apenas por ter censurado um livro de Saramago em 1992; no futuro, Barreto Xavier será recordado apenas por ter defendido e autorizado a extradição ilegal de 85 obras de Miró.

Deputada do PS, ex-ministra da Cultura

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