O festival nómada que ainda não saiu de João Pessoa

Nos dez dias entre 4 e 14 deste mês, 120 convidados internacionais aterraram em João Pessoa, no nordeste brasileiro. À sexta edição, o Cineport homenageou o cinema português. É um festival à espera que Portugal melhore para vir até cá.

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João Pessoa, a capital do estado da Paraíba, será a terceira cidade mais perigosa do Brasil Sergio Jorge Brazil/ Photononstop/AFP
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"I Love Kuduro" ganhou o prémio para melhor fotografia

Talvez seja menos um festival de cinema e mais um espaço de encontro, de cruzamentos. São flashes, pequenos momentos. Por exemplo, um actor a aparecer em tronco nu para fumar um cigarro na varanda do seu quarto de hotel com vista sobre a piscina.

Passa da 1h. Madrugada quente, densa e húmida. Do outro lado da estrada as palmeiras e a praia estão em silêncio. Nenhum carro, ninguém. Cá de baixo, do relvado, o realizador Bruno de Almeida acena para a varanda. Pergunta pelo espectáculo do dia seguinte. Então, o rosto de Vítor Correia transforma-se num sorriso franco. Breves palavras. E um ensaio de Tabacaria começa de improviso. Só voz. E os cortinados e a luz do quarto dele como cenário a flutuar alto na noite escura:

“Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo

Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?

Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –

Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,

E quem sabe se realizáveis,

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?

O mundo é para quem nasce para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão”

Este momento. E aquele em que o actor Carlos Santos conta à actriz Ana Moreira como um dia, em 1974, ainda ela não era nascida, Lourdes Norberto se esqueceu da sua deixa para entrar em cena num Platonov de Jorge Listopad, deixando-o a ele pendurado.

Sinde Filipe era Platonov, Lourdes Norberto era Sacha e Carlos Santos era Osip – ficou em cena a gritar várias vezes a mesma deixa, à espera de ser salvo: “Eu mato-te! Mato-te! Ouviste? Eu mato-te! Vou-te matar!”

Os olhos azuis de Ana Moreira brilham a rir neste fim de tarde quente antes de dezenas de convidados internacionais do Cineport deixarem o seu hotel novo a estrear na Avenida Cabo Branco de João Pessoa e rumarem à Usina, junto ao centro histórico.

Se fosse o Porto, seria como estar na Foz e rumar à envolvente da Campanhã, a antiga, anterior à gentrificação da Ribeira.

João Pessoa, a capital do estado da Paraíba, no nordeste, também é antiga – a terceira cidade mais antiga do Brasil, fundada em 1585 nas margens do Rio Sanhauá. Então chamava-se Cidade Real de Nossa Senhora das Neves. Hoje, quatro séculos volvidos, vai competindo com cidades como Maceió pelo título da mais perigosa do Brasil. Neste momento será a terceira cidade mais perigosa do país – a nona do mundo.

Como acontece em San Pedro Sula, nas Honduras, Ciudad Juárez, no México, ou Cali, na Colômbia, em João Pessoa morre-se mais e às vezes pior do que em muitos cenários de guerra. Na Avenida Cabo Branco, porém, há restaurantes italianos, crianças a andar de skate, patins e bicicleta serão fora e mulheres a fazer jogging sozinhas para lá da meia-noite.

O que se passa, passa-se nas periferias inundadas de marijuana, cocaína e crack. Assassinatos serão 66 anuais para cada grupo de 100 mil habitantes. Em algo mais de 700 mil habitantes, seriam mais de 462 assassinatos em 12 meses. Mas houve anos em que foram mais de 500.

Nos primeiros dois meses deste ano terão sido 58 – uma redução para quase metade dos 105 de igual período em 2013. Isto apesar de uma investigação recente da Polícia Federal ter identificado milícias e grupos de extermínio formados pelos seus próprios agentes. Apesar de homens e mulheres aparecerem decapitados no meio de estradas, à vista de todos.

É nas periferias dizíamos. E mesmo a Usina, já longe da orla marítima, não é periférica.

Transformada num centro cultural, a Usina ocupa o complexo das antigas instalações de João Pessoa da Energisa, um dos principais grupos privados do sector eléctrico no Brasil – luz para 6,8 milhões de pessoas, o equivalente a 3,5% da população brasileira. Ou seja, muitos milhões de reais de lucro.

Destes últimos milhões, alguns vão para a Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho e, desta, uma fatia transita para o Cineport, o único festival exclusivamente dedicado ao cinema falado em português e produzido na CPLP.

Foram 1,8 milhões de reais (600 mil euros) investidos na sexta edição, dedicada a Portugal e ao cinema português. Cerca de 120 convidados, muitos dos quais portugueses (mas também brasileiros, moçambicanos, angolanos…). Realizadores, mas também actores, artistas plásticos, cantores, DJs… Anabela Moreira, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, Carminho e Lula Pena, Anabela Teixeira, Pedro Granger… Todos a desembarcarem em João Pessoa por 10 dias e para mais de 160 visionamentos, concertos, performances e lançamentos de livros.

Eventos previstos, claro – não que todos tenham de facto acontecido.

“O Brasil é assim, um pouco essa dose de improviso, é um pouco o espírito do Brasil”, diz a sorrir Mónica Botelho, directora-geral do Cineport e presidente da Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho, fundada em homenagem ao seu avô.

Quando nos encontramos, o festival vai a mais de meio. E, entretanto, já vários filmes – vários dos quais portugueses – foram cancelados na hora por falta de condições técnicas para a projecção, mudando de dia, de hora, de sala – nenhum aviso à navegação.

Na Usina, um pequeno complexo de edifícios brancos e amarelos com jardim e calor de abafar, o Cineport abriu com a inauguração de uma exposição de Daniel Blaufuks. Às seis da tarde marcadas, o primeiro transfer estacionou à porta e derramou sobre o passeio quente o primeiro grupo de convidados. Então, ali mesmo, na rua, uma banda começou a tocar como numa festa de aldeia, cheia de sopros e percussão. A partir daí, o improviso foi a constante.

Atrasos de horas. Filmes de cor rebentada, sem som. Sessões transferidas de data em data e a acabarem a coincidir com concertos. Salas vazias de um lado, a abarrotar do outro.

Seria impensável em centenas de festivais. Mónica sorri. Não no Cineport. No Cineport “toda a boa vontade acaba por superar os problemas”, diz-nos calmamente. “A verdade é que temos este compromisso – a ideia é desenvolver a cena paraíbana. É preciso insistir.”

Festival nómada

Originalmente, o Cineport foi concebido como evento nómada. Em anos intercalados aconteceria no Brasil e num dos restantes países da CPLP. Aconteceu uma vez, à segunda edição, em 2006 – foi no Algarve. Não se repetiu com qualquer dos outros países da CPLP. Mas o objectivo continua sobre a mesa. “Continuamos a sonhar com a alternância da sede”, diz Mónica.

Angola seria uma possibilidade. Há dinheiro. E, este ano, o cantor, compositor e produtor audiovisual José Eduardo Paulino dos Santos, conhecido como Coréon Dú, filho do presidente José Eduardo dos Santos e dono da Semba Comunicação, que gere o segundo canal da televisão pública angolana – a TPA2 – esteve no Cineport.

Chegou com o realizador Mário do Patrocínio, autor do documentário I Love Kuduro, que a Semba produziu e que, no festival, ganhou o prémio para melhor fotografia. Chegou também com uma comitiva de seguranças armados e muitos olhares curiosos em volta.

Mónica diz que “Angola seria um parceiro estratégico, porque tem recursos”. No entanto, sublinha também ser esse um caminho pouco fácil de percorrer. “Se é complicado na Paraíba, imagine-se em Angola...”, diz ela ainda a sorrir.

Na verdade, o sorriso não a abandona nunca. E há bons motivos para tal. O Brasil mudou muito desde 1999, quando ela assumiu a presidência da fundação dedicada ao seu avô, o homem que durante 60 anos esteve à frente da Companhia Força e Luz Cataguases-Leopoldina, a antecessora de Energisa.

Em Cataguases, cidade para 70 mil habitantes no estado de Minas Gerais, o primeiro passo, nesse final de década, foi estruturar a acção local da fundação. Reabilitaram-se edifícios públicos, criou-se um teatro, um museu, uma escola de artes. E a primeira edição do Cineport foi lá, com a presença de Mário Soares e José Aparecido de Oliveira, dois dos ideólogos e fundadores da CPLP.

Nessa altura não era ainda evidente o boom que o Brasil atravessaria em anos seguintes. Nem o enorme crescimento do apoio público à Cultura, nomeadamente à produção audiovisual. Isso, diz Mónica, veio mudar tudo. Incluindo o sorriso dela.

Neste momento há “muitos fundos [estatais] para apoio à produção”. E não só isso. “No ano passado, conseguiu-se que as televisões de canal fechado sejam forçadas a comprar conteúdos a produtores independentes brasileiros. Não a grandes produtores, mas a independentes mesmo. Isto está a abrir uma procura gigantesca, enorme.”

É a perspectiva nacional – depois há a regional. “Há também muito dinheiro do Estado a ir para a regionalização, principalmente para o norte, o nordeste e Minas Gerais. Isto está a transformar totalmente a realidade da produção audiovisual brasileira.”

A conclusão é evidente: “No Brasil estamos a viver um momento muito bom. Acho que vamos ter só que esperar que a situação económica de Portugal melhore para alternar o festival com vocês.”

Mónica explica que “há uma conversa inicial com o Porto” (de resto, a presença de Paulo Cunha e Silva, actual vereador da Cultura da Câmara Municipal do Porto, no Cineport esteve prevista, acabando, porém, por não se concretizar).

“Uma vantagem em Portugal é que há infraestruturas e os custos seriam certamente menores do que numa Luanda. Aliás, muitos realizadores africanos vivem mesmo em Portugal”, acrescenta Mónica. “É fácil – seria fácil.”

Até a conversa avançar com o Porto – se avançar – o Cineport fica em João Pessoa.

O PÚBLICO viajou a convite do Cineport

 

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